UM HOMEM MUITO ESTRANHO
Publicado em 23 de março de 2015
Por Jornal Do Dia
* Paulo Fernando Morais
A bola é redonda. O laço da forca é redondo. O rapaz deu um bicudo acertando o laço da forca, assustando o homem que ia se matar, porque sua vida não era nada redonda.
O homem pegou a corda e enlaçou-a num caibro do corredor, e depois foi apanhar um tamborete, quando a bola surgiu atrapalhando seu plano.
A pelada estava sendo jogada na rua de barro em frente da casa simples do homem, que se esquecera de fechar a janela, tão com pressa estava para morrer.
Responsáveis pelo incidente, os adolescentes ficaram rindo nervosamente, sem imaginar que haviam adiado uma cena trágica.
O homem apareceu na janela com a bola na mão, e antes de devolvê-la demorou observando os garotos, que estavam agrupados ao lado de uma das balizas, e olhavam para ele com ansioso interesse. O suicida frustrado jogou a bola mas não se retirou, como se esperasse o reinício do jogo.
O que deu o chute pensou: aquele homem gosta de futebol, porque não se aborreceu, e está ali para ver a gente jogar. Quando não estavam com a bola, sentiam o olhar atraído para a janela onde o homem permanecia imóvel e atento. Daí a pouco foram percebendo que o homem estava gostando do jogo, por causa disso esforçavam-se para jogar bem, exibirem-se com seu melhor talento para a plateia de um homem só, porém digna e estimulante. Vibravam como nunca quando os gols iam surgindo, e enquanto se abraçavam comemorando fixavam os olhos no homem, que assistia a tudo com semblante de bondade e apoio, e sabiamente não torcia, aplaudia as boas jogadas, porque não pegaria bem contrariar qualquer um dos litigantes.
Um dos jovens chutou a bola de propósito para perto da janela, e todos correram para devolvê-la, mas o que queriam mesmo era ver o homem de perto, ouvir sua palavra, e puderam notar que era relativamente moço, talvez da idade dos pais deles. Embora demorassem examinando-o, com o pretexto de ver quem ficava com a bola, conseguiram apenas um sorriso complacente e um olhar vago, mas dentro do coração de cada um a certeza de que aqueles olhos refletiam não só o que estava diante deles, mas as coisas existentes em lonjuras jamais por outros palmilhadas, talvez caminhos exclusivamente dele, por isso aceitavam o fato de ele não se mexer, certamente viajava no tempo, e imaginavam não haver melhor jeito humano para alcançar tal façanha.
A figura humana congelada na janela dava dignidade e energia ao futebol. Os jogadores superavam-se tocados pela imagem silenciosa e dominadora, estática e vibrante. Olhavam para a bola e para a janela, e, mesmo convencidos de que o olhar do homem percorria distâncias astronômicas, estava ali para analisá-los, escolhendo os melhores para o time dele, com certeza o melhor do mundo, que de uma pessoa como aquela não se podia esperar coisa menor. Restava-lhes cumprir rigorosamente seu papel em campo, esmerando-se nas jogadas. Acabado o jogo, o homem faria seu julgamento, depois de ter avaliado com a justiça que lhe era inerente – sabiam-no – o desempenho de cada um.
Ficaram decepcionados quando o homem se retirou. A peleja foi interrompida, olharam-se ansiosos, sentiram-se desprotegidos e desmotivados, mas foi um desânimo de curto tempo. Ei-lo de novo. O jogo recomeçou com maior determinação, os gols eram feitos com incomum facilidade, e então se deram conta de que tê-lo próximo era uma necessidade vital sem a qual jogar não teria sentido e a alegria desapareceria.
Viram, curiosos, quando o pároco chegou e cumprimentou-o com reverência. Era um sacerdote à antiga, com sua batina desengonçada, e o barrete desbotado, e tinha o suspeito costume de conversar sem olhar os olhos do interlocutor; inquieto como se estivesse fugindo de alguém ou com medo de alguma coisa.
Numa combinação tácita, os jogadores faziam a bola girar perto dos dois, para ouvir a conversa. Conquanto ambos falassem baixo, algumas palavras foram captadas com dificuldade, porém o suficiente para entenderem que se tratava de coisas da Igreja, e ficaram intrigados porque nunca lhes passaria pela cabeça que aquele desconhecido soubesse de assuntos sagrados, e ao mesmo tempo gostasse de futebol; e assustados ficaram quando as vozes subiram de tom e o homem falou mais alto do que o padre, que o ouvia cabisbaixo, e até dava a impressão de pedir-lhe desculpas. As palavras do homem estranho surpreenderam o sacerdote: "Vocês estão criando respostas para o que não conhecem. E por isso se contradizem. A próxima será lidar com a existência de seres inteligentes fora da Terra."
O padre saiu desalentado, a cabeça movendo-se para os lados, os olhos desconfiados como os de uma criança que acaba de cometer uma traquinice.
Com um empresário, o mais rico da cidade, houve a repetição do que aconteceu com o padre, exceto a exortação: "O ânimo ganancioso de vocês capitalistas será punido com maior rigor do que está na Bíblia." O empresário, com um sorriso sarcástico, fez-lhe ligeira reverência, e despediu-se.
Começou a chover. O futebol continuou, o homem afastou-se da janela, com um recuo que não lhe tirava a visão do campo.
Era de tardinha quando apareceu um juiz de direito. A chuva havia passado, porém o tempo prometia mais água. O magistrado cumprimentou-o com mão redonda, balofa, curvando-se como nos nobres salões.
Os rapazes ouviram quando o homem disse que estava cansado, passara por momentos de grave fraqueza por causa do comportamento humano, e que foram eles, os futebolistas, que lhe deram mais vida e esperança. E as palavras finais ao juiz: "É preciso julgar com compreensão, sem perder a perspectiva da condição humana. A prática de absurdos é tão habitual que os julgamentos daqui a pouco se basearão em Leis Divinas, inaplicáveis."
A chuva voltou. O juiz estendeu-lhe a mão recheada, e saiu irritado. O homem olhou para os atletas e sorriu, e lhes disse que, quando da idade deles, gostava de jogar na chuva. Fizeram uma algazarra triunfante, e correram para o campo. A bola rolou. Quando voltaram o olhar, a janela estava fechada.
* Paulo Fernando Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)