O 14 de Nisã do ano 30 ou 33 na Palestina ou os perigos da quase unanimidade
Publicado em 01 de abril de 2015
Por Jornal Do Dia
* Miguel dos Santos Cerqueira
Os versos de uma canção do grande compositor brasileiro, o Chico Buarque de Holanda, diz "que vence na vida quem diz sim" Isso significa que o dizer "não" é para poucos, talvez, para aqueles que têm coragem de contrariar e permanecerem sãos.
Não restam dúvidas que é sempre melhor seguir as multidões, ouvir os clamores do povo, atender aos apelos da opinião pública, sem auscultar os postulados da racionalidade, pois assim não se fica isolada e se tido como besta ou louco.
Embora do Julgamento ou Justiçamento de Jesus, o Nazareu, ou Jesus de Nazaré com é mais conhecido, só se conheça os relatos da Bíblia, Livro Religioso, eivado de intenções teológicas, visto que outros relatos históricos, com os de Tácito, "Os Anais", Seutônio," A Vida dos Doze Césares" ou Flávio Josefo, "Antiguidades Judaicas", por exemplo, só falem de Jesus, "en passant", exatamente dos relatos da Bíblia é que se pode inferir o quanto não é de boa sabedoria seguir os instintos ou acatar as vontades das multidões.
Segundo a Bíblia, no relato do Evangelho de São João, o Sumo Sacerdote, os Homens da Lei, os Anciões do Templo, todos eles incomodados com a presença nefasta de Jesus, fato que punha em risco a estabilidade da dominação romana e o próprio Templo Judeu, a representação do status quo econômico e religioso, entenderam de bom alvitre que "um só homem morresse pelo povo" daí como bons formadores de opinião à época passaram a insuflar o povo a respeito da periculosidade de Jesus, até que, supostamente, do dia 14 de Nisã do ano 30 ou 33 da nossa Era, conseguiram arrebanhar o povo, quase toda unanimidade do povo para que acossasse o Procurador Romano na Palestina, Pôncio Pilatos, e, sob a ameaça de que se assim não fizesse estaria contra Tibério César, conseguiram a condenação de Jesus, sob a acusação de sublevação.
Outro personagem histórico não tão relevante quanto Jesus de Nazaré, pouco conhecido da maioria, senão dos estudiosos de medicina e de filosofia, mais um dos maiores pensadores e cientistas que a humanidade já conheceu, o espanhol Miguel Servet, o responsável pela descoberta da circulação sanguínea pulmonar, também foi uma das vítimas da fúria das quase unanimidades. O espanhol, devotado às questões transcendentais de natureza religiosa e filosófica, publicou dois Tratados que contrariavam a crença na Trindade, o Tratado Trinitatis Erroribus ("Sobre os erros da trindade") e Dialogorum de Trinitate ( "Diálogos sobre a Trindade"), a crença na Trindade é o dogma que quase unifica todos os Cristãos em todas as épocas, por esta razão, ao atacar a este dogma fundamental do cristianismo, o cientista e filósofo foi considerado um blasfemo e herege, atraindo contra si quase que a unanimidade da cristandade da Europa de então, sendo considerado réu nas jurisdições civis e eclesiásticas.
Em Genebra, sob o domínio do reformador João Calvino, aquele da predestinação, da tese de que uns são criados para danação eterna e outros eleitos para a salvação, sob os apupos das multidões enfurecidas , no dia 27 de outubro de 1553, com uma coroa de juncos impregnada de enxofre sobre a cabeça, Miguel Servet foi queimado vivo em fogo lento, porque divergia das maiorias.
Outro episódio envolvendo as multidões, que diz respeito a irracionalidade de massas heterogêneas, é o que envolve dois militantes anarquistas italianos condenados a morte nos Estados Unidos na década de 1920, tratam-se dos personagens conhecidos pelos sobrenomes de Sacco e Vanzetti, esses injustamente acusados de roubo, acusação decorrente do fato de serem esquerdistas e militantes sindicais, defenderem o direito de greve e redução da jornada de trabalho, em um país onde vigorava o individualismo e o capitalismo, foram vítimas de um dos maiores erros judiciários da história do Estados Unidos e condenados a morte em praça pública por enforcamento.
O escritor Búlgaro, Prêmio Nobel de Literatura em 1981, Elias Canetti, no seu mais famoso livro "Massa e Poder", considerado importantíssimo para aqueles que estudam comunicação e as massas, trata desse fenômeno que envolve a unanimidade e domesticação das massas para determinados propósitos diversionista ou de ascensão ao poder. O livro traduz muito do que foi a irracionalidade do surgimento, ascensão e vitória na então civilizada Alemanha.
Afinal, porque se traz todos esses episódios históricos, tão dispares e tão distantes um do outro no tempo, para reflexão nos dias de hoje? O que esses fatos históricos têm a ver com o "SIM" e o "NÃO", com a UNANIMIDADE ou com DIVERGÊNCIA.
Pode até ser que não guardem entre si semelhança, porém cada um dos episódios relatados tem a ver com a irracionalidade das unanimidades, com o equívoco que quase sempre é a opinião pública, com o erro de se consentir com as multidões nas suas exigências sazonais.
Neste momento histórico de histeria coletiva, quando o Brasil atravessa uma crise econômica, social e ética, quando a maioria raivosa e bestializada se deixar levar pela irracionalidade e está à procura de um bode expiatório para que purgue os pecados da nação, um bode expiatório como aquele que os Judeus costumam expulsar para o deserto no dia da expiação, a fim de se livrarem dos seus pecados e poderem cometer outros e não o "Cordeiro de Deus" que sob e na cruz carregou as nossas dores comuns, pondo o fim em todos os sacrifícios doravante e anunciando a esperança da Ressurreição da carne no tempo da escatologia. É bom que nesses dias tempestuosos de diversionismo se rememore o 14 de Nisã do ano 30 ou 33, aquela data que se elegeu para "que um só homem morresse pelo povo e salvasse a nação" e não a libertação dos Hebreus da escravidão do Egito sob Ramsés II, que tem mais a ver com unanimidades e multidões.
Nos dias de hoje, dias de caças às bruxas ou à "bruxa", não façamos como naquele fatídico 14 de Nisã, véspera do dia da Páscoa Judaica, não fiquemos a procura de bodes expiatórios para nossas culpas coletivas, não descarreguemos nossas raivas sobre os menores que cometem pequenos delitos, sobre os negros que exigem reparação pelos tempos de escravidão, lembremos que foram mais de 6 milhões de almas trazidas da Costa da África que morreram nos engenhos, nas minas e nas plantações de café, ou pelos gays ou outros que nos são diferentes e exigem espaço e direitos, fazendo aprovar leis que atendem aos anseios das multidões por linchamentos e exclusões. Afinal estamos fartos de mártires que contrariam a opinião pública, de um "só homem que morra pelo povo". Estamos fartos de que um só povo ou um só grupo social sejam os responsabilizados por todos os nossos vícios e mazelas, como se fôssemos de fato nós, a maioria, o povo eleito que deve prevalecer e dominar
* Miguel dos Santos Cerqueira, Defensor Público, titular da Primeira Defensoria Pública Especial Cível do Estado de Sergipe, Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e-mail migueladvocate@folha.com.br