Domingo, 12 De Janeiro De 2025
       
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Os meninos à volta da fogueira


Publicado em 23 de março de 2018
Por Jornal Do Dia


 

* Lelê Teles
Numa serra, próxima à minha aldeia, 
tem uma caverna onde vive um er
mitão.
Negro, magro como um faquir, pele lustrosa, barba e cabelos incrivelmente brancos.
Os adultos dizem que ele tem 133 anos.
O Velho Benga é o griô da nossa gente e nos recebe uma vez por mês.
As crianças nas sextas-feiras de lua cheia, os homens na última quarta do mês e as mulheres sempre nas primeiras segundas-feiras.
Nesta sexta, a noite estava incrível.
Da aldeia víamos um pequeno foco de fogo no alto da serra, a boca da caverna iluminada. 
Dava para imaginar o velho com palhas na mão, limpando o terreno, depois pondo gravetos junto à madeira, soprando o fogo, tossindo com a fumaça…
Quando a fogueira começa a arder é hora das crianças subirem a serra. o nosso televisor está ligado.
Dentro da cripta, sentados em semicírculo a admirar a crepitação da madeira, ouvimos o velho nos falar sobre divindades e entes mágicos, míticos e místicos, despertando o animal crístico que habita em cada um de nós.
A luz do fogo cria imagens sensacionais na parede da caverna, o velho caminha, dá voltas e gesticula, sabendo que sua sombra projetada no monólito também ajuda a contar a história.
Às vezes ele deixa de falar e vemos apenas a sua mímica sombreada e, assim, deciframos o que quer dizer.
Ele já nos contou da coragem de Orfeu e da sabedoria hierofante, nos falou de Cristo e Krishna, de Doinísio e Diana, de Baha´u’llah e de Buda, de Quetzacoatl e Nhanderu.
Benga quase sempre termina suas falas contando um causo envolvendo algum orixá, mas o que mais nos fascinava mesmo era quando ele retornava à jornada de Ulisses.  
O velho dizia que era preciso venerar esses entes que não estão mais vivos, porém nunca morreram, pois não deixaram de existir.
"Hoje, dia 14 de março", disse o velho lá pelas tantas, a fogueira dançando dentro dos olhos dele, "mais uma criatura subiu ao panteão".
"No mesmo dia em que morreu Karl Marx", pontuou.
"É incrível como os pacifistas morrem de forma violenta: Cristo, Gandhi, John Lennon, Martin Luther King…" O velho caminha lentamente com seu cajado na mão direita, dando uma volta na fogueira enquanto fala.
"Mas são esses pacifistas mortos de forma violenta que despertam os passivistas."
Uma estrela cadente rasgou o céu, com sua cauda ígnea.
"Muita gente", prossegue o velho griô, "ainda precisa escutar o estrondo dos tiros, o tilintar da espada e da guilhotina, ou os gemidos intermináveis de dor para despertarem do sono profundo."
Em um certo momento ele disse que quando Marielle cerrou as pálpebras, ela abriu os olhos da nação.
"Seu corpo foi depositado numa cova como uma semente, que brotará ali, metaforizada em uma árvore bonita e frondosa que, na primavera, florescerá em novas vidas que se multiplicarão indefinidamente. sou uma ave que cantará naquela árvore todo fim de tarde".
E, ao dizer isso, o velho nos deu as costas.
O fogo morria calmamente, matando a sua sombra.
Enquanto descíamos a serra, ouvíamos sair da gruta uma música mântrica e reverencial. era o velho Benga a soprar, melancolicamente, o seu velho shofar de chifre de cabra recurvo.
Marielle, presente!
Íamos cantando em coro até chegar em casa.
Pela primeira vez fizemos isso, porque sempre descemos a serra cantando Nhaneramoi’i Karai Poty, dos meninos guarani.
Antes de pegar no sono, deitado e olhando para o teto, me pus a pensar: o que pensarão outros meninos que ouviram a mesma história por outro mecanismo televisivo?
Palavra da salvação.
* Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista

* Lelê Teles

Numa serra, próxima à minha aldeia,  tem uma caverna onde vive um er mitão.
Negro, magro como um faquir, pele lustrosa, barba e cabelos incrivelmente brancos.
Os adultos dizem que ele tem 133 anos.
O Velho Benga é o griô da nossa gente e nos recebe uma vez por mês.
As crianças nas sextas-feiras de lua cheia, os homens na última quarta do mês e as mulheres sempre nas primeiras segundas-feiras.
Nesta sexta, a noite estava incrível.
Da aldeia víamos um pequeno foco de fogo no alto da serra, a boca da caverna iluminada. 
Dava para imaginar o velho com palhas na mão, limpando o terreno, depois pondo gravetos junto à madeira, soprando o fogo, tossindo com a fumaça…
Quando a fogueira começa a arder é hora das crianças subirem a serra. o nosso televisor está ligado.
Dentro da cripta, sentados em semicírculo a admirar a crepitação da madeira, ouvimos o velho nos falar sobre divindades e entes mágicos, míticos e místicos, despertando o animal crístico que habita em cada um de nós.
A luz do fogo cria imagens sensacionais na parede da caverna, o velho caminha, dá voltas e gesticula, sabendo que sua sombra projetada no monólito também ajuda a contar a história.
Às vezes ele deixa de falar e vemos apenas a sua mímica sombreada e, assim, deciframos o que quer dizer.
Ele já nos contou da coragem de Orfeu e da sabedoria hierofante, nos falou de Cristo e Krishna, de Doinísio e Diana, de Baha´u’llah e de Buda, de Quetzacoatl e Nhanderu.
Benga quase sempre termina suas falas contando um causo envolvendo algum orixá, mas o que mais nos fascinava mesmo era quando ele retornava à jornada de Ulisses.  
O velho dizia que era preciso venerar esses entes que não estão mais vivos, porém nunca morreram, pois não deixaram de existir.
"Hoje, dia 14 de março", disse o velho lá pelas tantas, a fogueira dançando dentro dos olhos dele, "mais uma criatura subiu ao panteão".
"No mesmo dia em que morreu Karl Marx", pontuou.
"É incrível como os pacifistas morrem de forma violenta: Cristo, Gandhi, John Lennon, Martin Luther King…" O velho caminha lentamente com seu cajado na mão direita, dando uma volta na fogueira enquanto fala.
"Mas são esses pacifistas mortos de forma violenta que despertam os passivistas."
Uma estrela cadente rasgou o céu, com sua cauda ígnea.
"Muita gente", prossegue o velho griô, "ainda precisa escutar o estrondo dos tiros, o tilintar da espada e da guilhotina, ou os gemidos intermináveis de dor para despertarem do sono profundo."Em um certo momento ele disse que quando Marielle cerrou as pálpebras, ela abriu os olhos da nação.
"Seu corpo foi depositado numa cova como uma semente, que brotará ali, metaforizada em uma árvore bonita e frondosa que, na primavera, florescerá em novas vidas que se multiplicarão indefinidamente. sou uma ave que cantará naquela árvore todo fim de tarde".
E, ao dizer isso, o velho nos deu as costas.O fogo morria calmamente, matando a sua sombra.
Enquanto descíamos a serra, ouvíamos sair da gruta uma música mântrica e reverencial. era o velho Benga a soprar, melancolicamente, o seu velho shofar de chifre de cabra recurvo.
Marielle, presente!
Íamos cantando em coro até chegar em casa.
Pela primeira vez fizemos isso, porque sempre descemos a serra cantando Nhaneramoi’i Karai Poty, dos meninos guarani.
Antes de pegar no sono, deitado e olhando para o teto, me pus a pensar: o que pensarão outros meninos que ouviram a mesma história por outro mecanismo televisivo?Palavra da salvação.
* Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista

 

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