Questão social, questão de polícia
Publicado em 12 de dezembro de 2018
Por Jornal Do Dia
* Emir Sader
Antes de FHC, outro político nascido no Rio foi adotado pela elite paulista. Washington Luís, conhecido como "paulista de Macaé", foi o último presidente do Brasil antes de Getúlio Vargas. Ele ficou renomado também pela declaração de que "questão social é questão de polícia", além daquela de que "governar é construir estradas", para enviar os produtos de exportação até os portos e, dali, para o exterior.
A primeira dessas declarações caracterizou a indevidamente chamada "república velha", porque nada tinha de república e tudo de velha. A declaração apontava para a repressão, como única forma de resposta governamental, diante de mobilizações populares, que colocassem reivindicações de caráter social, seja de salário ou de péssimas condições de trabalho.
Não houve mudanças mais radicais na história brasileira do que a passagem de um personagem como esse para o governo do Getúlio. Se até 1889 os negros eram considerados escravos, pessoas de segunda classe, condenados ao trabalho (o que desqualificava, ao mesmo tempo, o negro e o trabalho), e eram tratados com repressão pelos governos, a partir de 1930 os brasileiros passavam a ser interpelados pelo novo presidente como "trabalhadores do Brasil".
Mas essa mudança radical não ficava no discurso. Getúlio criou os ministérios do trabalho, da Educação, da Saúde, a Previdência Social, o direito a sindicalização dos trabalhadores, o salário mínimo, a CLT. Uma mudança que a elite paulista nunca engoliu. Não há nenhum espaço público em São Paulo com o nome do Getúlio e há enorme quantidade com o nome do Washington Luís.
Os dois ícones máximos da identidade de São Paulo são os bandeirantes – veja-se a horrorosa estatua do Borba Gato em Santo Amaro – e a contrarrevolução de 1932, que pretendia restaurar o poder dos oligarcas do café, para quem Washington Luís é o maior ídolo.
O acelerado processo de restauração conservadora por que passa o Brasil desde 2016, suprimiu a CLT, retornando o país à situação prévia a 1930, quando da ausência do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e sua representação pelos sindicatos. Se escanteia o papel do Getúlio e se repõe no seu lugar ao Washington Luís, o da questão social como questão de policia.
Os retrocessos tem uma dimensão histórica, mas também civilizatória. Não se trata apenas de diferenças de interpretação, de diferenças políticas. Porque se reabrem temas que se considerava, talvez ingenuamente, que estavam superados. Como, por exemplo, considerar se o Brasil estava melhor ou pior durante a ditadura militar, em comparação com a democracia que conseguimos construir. O uso da tortura, como forma abominável de ação, volta a ser elogiado, assim como os que a utilizaram sistematicamente contra seus adversários. Se volta a falar que a ditadura – a daqui e a do Pinochet – deveria, ao invés de prender, torturar, desaparecer, ter fuzilado umas 30 mil pessoas. Agora o obscurantismo, exibido agora em pudor, por ministro da educação, por ministro de relações exteriores, por secretaria de Direitos Humanos.
Não é apenas a questão social que volta a ser questão de polícia. Os direitos humanos em geral, os direitos das mulheres, dos negros, dos jovens, dos indígenas, dos LGBT, dos quilombolas, os direitos dos trabalhadores da cidade e do campo – tudo tende a ser criminalizado, a ser objeto de ação do judiciário, da polícia.
Uma vez um presidente eleito do Brasil disse que ia "virar a pagina do getulismo". Dizia porque tinha consciência que a realização do programa neoliberal era incompatível com o Estado construído pelo Getúlio. Agora se trata de terminar esse objetivo, destruindo o Estado brasileiro, destruindo o Brasil como país, como nação, como sociedade civilizada.
* Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros