A imprescindibilidade de vítimas, sacrifícios e holocaustos
Publicado em 01 de fevereiro de 2019
Por Jornal Do Dia
* MIGUEL DOS SANTOS CERQUEIRA
A história da humanidade, suas crenças religiosas, suas ideologi- as políticas, seus sistemas econômicos e de governo são prenhes de sacrifícios e holocaustos, espécies de práticas e rituais religiosos nos quais as vítimas nem sempre são animais irracionais, mas sim seres humanos.
Desde o começo da civilização humana, lá pelas bandas da Idade da Pedra e da Idade do Bronze, passando pelas eras das civilizações Egípcia, Assíria, Babilônica e Persa, sacrifícios e holocaustos tinham o fito de aplacar a ira dos deuses, garantia excelência da agricultura e garantir boas colheitas.
A civilização hebraica, que anteriormente fora politeísta, similarmente a demais civilizações, com as quais convivia, sem a ausência de episódios de violência, idas e vindas e traumas, evoluiu para o monoteísmo. Não obstante a adoção do monoteísmo, a civilização hebraica não se desvencilhou das práticas de sacrifícios e holocaustos, que se tratava de exigências rituais do seu deus Javé para que prevalecesse a supremacia racial e da nação, bem como para garantir o bom êxito das colheitas e a saúde dos rebanhos.
O Cristianismo que nasceu com seita divergente e herética do Judaísmo, que por muito tempo permaneceu como umas das seitas da religião dos hebreus, a exemplo do farisaísmo. A partir de interpretações teológicas da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento em conjugação com a filosofia platônica e o Orfismo, na Antioquia, quando então se assentou que a morte violenta e vergonhosa de Jesus, o Nazareu e sua suposta ressurreição, fora uma espécie de sacrifício último e definitivo, em substituição aos holocaustos e sacrifícios que eram realizados no Templo de Jerusalém, que deixou de existir no ano 70 da nossa era, evoluiu para forma de religião dissociada do Judaísmo.
Segundo a ótica cristã, como se pode ler, sobretudo na Carta aos Hebreus, do episódio da morte e ressurreição de Jesus em diante não se fazia mais necessário sacrifícios cruentos de animais, posto que a morte sacrificial de Jesus o tornar o Único intercessor e Propiciador perante Deus, seu pai.
Acontece, contudo, que com o Cristianismo, notadamente no Ocidente, se inaugurou a vedação de sacrifícios cruentos de animais como prática de intercessão e propiciação, mas, entretanto, os sacrifícios e holocaustos que não são práticas e rituais apenas religiosos, que não se restringem ao ritual da missa Católica, aos dízimos e ofertas diuturnas entregues nos templos de seitas neopentecostais ou ainda a oferta de frutas e guloseimas nos templos hinduístas, permanecem íntegros e eficazes em outras órbitas das sociedades.
É certo que, também os sistemas econômicos e os regimes políticos exigem sacrifícios e holocaustos, e nesses rituais, nunca apenas simbólicos, as vítimas sempre e sempre são e sempre serão humanos.
Um exemplo clássico de holocausto de humanos no altar do capital, para refastelo e gozo do sistema econômico e do deus dinheiro é o do episódio de maio 1886, quando os operários da cidade de Chicago, centro industrial dos Estados Unidos, se levantaram contra as péssimas condições de trabalho, exigindo a redução da jornada de trabalho, que naquela época a jornada de trabalho variava entre 13 e 16 horas. No dia 3 de maio, durante o enfrentamento com a polícia, seis trabalhadores foram mortos, o que resultou num protesto furioso no dia seguinte, na confusão morreu um policial e outros 38 operários foram assassinados e 115 feridos, sendo decretado Estado de Sítio. A repressão prendeu as lideranças do movimento, cinco foram condenados a forca: o anarquista Hessois Auguste Spies, os sindicalistas Adolph Fisher, George Engels, Albert R Parsons, Louis Lingg. Um dia antes da execução dos chamados Mártires de Chicago, 11 de novembro de 1887, um dos prisioneiros, Louis Lingg, apareceu morto na prisão, na época as autoridades declaram que o mesmo se suicidara. O episódio é a origem do atual Dia Internacional do Trabalhador, em 1º de Maio na maioria dos países ocidentais.
Também o fato histórico ocorrido a 25 de março de 1911, às 5 horas da tarde, em Nova Iorque, quando ocorreu um incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist, é um episódio de holocausto para o agrado do deus capital, que matou 146 trabalhadores: 125 mulheres e 21 homens, na maioria judeus. A fábrica empregava 600 pessoas, em sua maioria mulheres imigrantes judias e italianas, entre 13 e 23 anos. O episódio é, para a maioria dos historiadores das lutas operários, a verdadeira gênese da comemoração do Dia Internacional da Mulher.
Na esfera dos regimes políticos, notadamente dos regimes autocráticos e segregacionistas com foi o apartheid, que vigorou na África do Sul até a libertação de Nelson Mandela com sua posterior ascensão ao poder , se pode citar o Levante de Soweto como um dos episódios de holocausto e sacrifício, nesse caso para aplacar a fúria do deus raça e reafirmar a fé monoteísta da supremacia da raça branca.
O Levante de Sowetofoi um dos mais sangrentos episódios de rebelião negra,ocorreu em 16 de junho de 1976, em protesto contra a inferioridade das "escolas negras" na África do Sul. Foi desencadeado pela repressão policial à passeata da qual participaram entre 15.000 a 20.000 estudantes. A manifestação pacífica foi sufocada por tropas de choque munidas de armas automáticas e mais de 700 estudantes foram mortos, dentre eles o estudante Hector Pieterson, de 13 anos de idade, que se tornou símbolo do massacre.
Voltando a esfera dos sistemas econômicos, suas necessidades de holocaustos e sacrifícios, no caso específico do capitalismo, segundo um dos filósofos da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin, "o capitalismo é uma religião, as práticas utilitárias do capitalismo – investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias – são equivalentes a um culto religioso". Os sacerdotes do capitalismo são os capitães de fábrica, são os empresários, são os juízes.
Em sendo uma religião cultual, dotada de dogmas e ritos, o sistema não se compadece de vítimas, como um corpo sacerdotal permanente, exige não apenas o pagamento e dízimos e ofertas, mas, sobretudo e principalmente, sacrifícios e holocaustos como aquele causado pela empresa Vale Mariana e mais recentemente em Brumadinho, no estado das Minas Gerais.
No caso dos sistemas econômicos, sua condição de religião cultual, ainda não apareceu um humano, um profeta, para exemplo de Jesus, o Nazareu, o qual se tornou denunciador e adversário do Templo, ou seja, do sistema religioso, econômico e político da então Jerusalém, que com sua morte sacrificial na cruz pelo Império Romano, em conluio com a elite religiosa e econômica que gravitava em torno do Templo de Jerusalém, substituiu em definitivo a morte de boi e ovelhas no Templo edificado por Herodes, o Idumeu, para servir de sacrifício último e definitivo, em substituição aos holocaustos e sacrifícios que são realizados para aplacar a fúria e satisfazer em definitivo o deus capital.
É por isso mesmo, pela ausência de alguém ou algo que venha a se tornar vítima e sacrifício definitivo, o único mediador entre a produção de mercadorias e riquezas e a sua distribuição justa e equitativa entre todos, que ao logo dos anos, no interior das fabricas, no campo, nas minas, nas guerras fratricidas, no Brasil ou em Bangladesh, vão se avolumando mais e mais as vítimas e o deus capital, com um deus voraz que é; o mais temível de todos os deuses revelados pelas religiões.
De fato, se vê que na esfera da economia permanece a imprescindibilidade de vítimas, sacrifícios e holocaustos reais e não simbólicos aos milhares, pois o supremo deus capital não aplaca sua ira e não se dispõe a ofertar bons frutos e boas colheitas se não sentir o exalar do odor da gordura de corpos humanos queimados como se fora incenso e sem o derramamento de sangue.
* MIGUEL DOS SANTOS CERQUEIRA, Defensor Público, estudioso de filosofia e história, militante de Direitos Humanos.