Sexta, 24 De Janeiro De 2025
       
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Cangaceiro


Publicado em 11 de maio de 2019
Por Jornal Do Dia


 

*Rangel Alves da Costa
Homem que carrega a canga. Mas canga não no sentido de tronco atravessado às costas, mas levando por cima dos ombros o peso da opressão, o fardo da exploração, a carga da submissão humana aos ditames das injustiças sociais e dos mandos governamentais e coronelistas. Mas nem de todos os coronéis, que se diga.
Sertanejo das brenhas do mundo. Sofrido até dizer chega, explorado até dizer basta, subjugado pelo poder político e econômico, esquecido de tudo, com serventia apenas para mostrar sua coragem para lutar. E foi assim que fez. Um dia foi chamado à luta e enveredou pelas caatingas construindo o seu próprio destino.
As motivações? Todas e muitos mais. Um Nordeste de latifúndios, de poder político encanecido pelas velhas e desumanas práticas, onde o pobre sertanejo era tido muito mais como objeto do que qualquer outra coisa. E por cima do matuto as imposições tributárias, as injustiças sombreando os mais fracos, a escravização sem precisar de chibata e grilhão.
Eis um homem desencantado com o seu meio, fugindo das perseguições, sendo ferido na sua honra, sendo aviltado pelos abusos policiais e das autoridades. E também as rixas pessoais, os desejos de vingança, as promessas e ilusões de um meio onde só cabia os mais valentes e destemidos. Tudo isso, e muito mais, motivou o passo na vida cangaceira.
Homem rude, iletrado, do mato, da mataria, das distâncias de tudo. Mas nem sempre assim. Muito cangaceiro sabia ler e escrever, tinha tino no juízo, sabia o que queria, possuía uma ideologia e conhecia bem o significado de sua vida e de sua luta. Um ou outro, como Cajazeira, era de família abastada. Percorrer as caatingas e viver debaixo de lua e sol, desafiando autoridades e enfrentado constantes perigos, eis a sina deliberada no mundo injusto e cruel.
Homem da terra, cheirando a sol, a suor, a sangue estancado da luta, a bicho do mato, a fumaça do fogo do coito, a chumbo do cano quente e enfumaçado. Mas também um destemido vaidoso, perfumado de qualquer loção, cheio de adornos e ornamentos dourados, com uma trova na língua e uma canção dolente cortando o silêncio das noites sertanejas enluaradas. E tantos amores embrenhados na cama da terra espinhenta.
Sertanejo de longa história, do passo catingueiro lá desde séculos passados. Desde o século XIX que começou a fazer história até sua saga ter fim já no século passado, depois da bala certeira dada em Corisco, lá pelos idos de 1940. Cangaceiro de bandos primitivos, como os de Lucas Evangelista, o Lucas da Feira; Jesuíno Alves Calado, o Jesuíno Brilhante; Antônio Silvino; e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. E também o bando desgarrado de Corisco, o Diabo Louro.
De características inconfundíveis, vestia seu manto encourado, sua calça lonada, sua preferência azulada, seu brim desgastado na passarela de urtiga e cansanção, ponta de pau e espinho traiçoeira, vereda encoberta e mataria fechada. Dia e noite na luta e sempre no porte altaneiro, ainda que o brilho das joias e o colorido das roupas estivessem ofuscados pela poeira da lide. 
Cabra valente de estética desafiadora para a vida difícil que levava. Chapéu de couro estendido, ovalado e com estrelas estilizadas ou medalhões de metal na porta frontal da aba. Um ou outro usava a jabiraca, que era um lenço envolvendo e descendo pelo pescoço. Encontrar um cabra assim nas caatingas já sabia o que era. Cangaceiro, seu moço, cabra valente sim.
Alpercata de couro cru, mais conhecida como "apracata de rabicho". Cartucheira cortando o peito, também cruzava o couro do embornal do ombro até a cintura. Um cantil também enfeitado, estilizado. Era tudo pesado, desde a roupa e adereços até chegar aos mantimentos que carregava. Falam em mais de vinte quilos. Anéis adornando os dedos, alianças enfeitando o chapéu, cabelos mais alongados, muitas vezes repuxados na brilhantina ou óleo de coco. Costumava carregar peças de ouro e moedas no embornal. Não esquecia o perfume, a gaita ou qualquer outro instrumento. 
O armamento se diversificava, podendo ser revólver, pistola, mosquetão ou fuzil, sem falar no velho rifle Winchester, também conhecido como "papo amarelo", mas sempre acompanhado da faca ou punhal. Uma vez aceito no bando, o nome de batismo dava lugar a um apelido. Dali em diante seria conhecido e chamado por nome de bicho, de pássaro, de elemento da natureza ou de qualquer outra denominação que mais parecesse com o alcunhado. 
Mas falar em cangaceiro é falar principalmente naquele cabra, e também mulher bonita, que serviu ao bando do Capitão Lampião, o mais famoso de todos que enveredaram pelos caminhos nordestinos revirados de trincheiras e respingados de sangue. Até hoje é o bando de Lampião que sintetiza toda a história cangaceira e sua luta. Virgulino foi o maior dos cangaceiros e o seu bando o mais famoso e destemido.
Mas afinal, o que era mesmo esse tal de cangaceiro, era gente ou bicho do mato, pessoa ou desatinado, ser de carne e osso ou uma besta humana em busca da próxima vítima? Cangaceiro vivia com cega maldade, jogando criancinha para o alto e a recebendo na ponta do punhal, estuprando aonde chegava, ferrando quem encontrasse, alastrando todo tipo de terror por onde passasse?
Pelo não se encontra o sim, pela negação se encontra a verdade, pelo que o cangaceiro não era é possível conhecer o que ele foi. E o que ele foi, por mais que se atreva em dizer, sempre estará distante da crueza daquela realidade. Por isso que todo dizer ainda falta alguma coisa a ser dita.
Mas algumas coisas sopraram no vento da verdade e cimentaram na história. Não pela certeza, mas pela lógica do acontecido e hoje tão analisado e lido. Disso decorre não ter sido o cangaceiro um pistoleiro, um jagunço, um celerado bandido, um assassino a sangue frio, um matador de aluguel, um delinqüente qualquer, uma bestialidade desordeira. Contudo, muitos, no exagero e na ignorância, procuram maculá-lo com as maiores infâmias do mundo.
*Rangel Alves da Costa, Advogado e escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

*Rangel Alves da Costa

Homem que carrega a canga. Mas canga não no sentido de tronco atravessado às costas, mas levando por cima dos ombros o peso da opressão, o fardo da exploração, a carga da submissão humana aos ditames das injustiças sociais e dos mandos governamentais e coronelistas. Mas nem de todos os coronéis, que se diga.
Sertanejo das brenhas do mundo. Sofrido até dizer chega, explorado até dizer basta, subjugado pelo poder político e econômico, esquecido de tudo, com serventia apenas para mostrar sua coragem para lutar. E foi assim que fez. Um dia foi chamado à luta e enveredou pelas caatingas construindo o seu próprio destino.
As motivações? Todas e muitos mais. Um Nordeste de latifúndios, de poder político encanecido pelas velhas e desumanas práticas, onde o pobre sertanejo era tido muito mais como objeto do que qualquer outra coisa. E por cima do matuto as imposições tributárias, as injustiças sombreando os mais fracos, a escravização sem precisar de chibata e grilhão.
Eis um homem desencantado com o seu meio, fugindo das perseguições, sendo ferido na sua honra, sendo aviltado pelos abusos policiais e das autoridades. E também as rixas pessoais, os desejos de vingança, as promessas e ilusões de um meio onde só cabia os mais valentes e destemidos. Tudo isso, e muito mais, motivou o passo na vida cangaceira.
Homem rude, iletrado, do mato, da mataria, das distâncias de tudo. Mas nem sempre assim. Muito cangaceiro sabia ler e escrever, tinha tino no juízo, sabia o que queria, possuía uma ideologia e conhecia bem o significado de sua vida e de sua luta. Um ou outro, como Cajazeira, era de família abastada. Percorrer as caatingas e viver debaixo de lua e sol, desafiando autoridades e enfrentado constantes perigos, eis a sina deliberada no mundo injusto e cruel.
Homem da terra, cheirando a sol, a suor, a sangue estancado da luta, a bicho do mato, a fumaça do fogo do coito, a chumbo do cano quente e enfumaçado. Mas também um destemido vaidoso, perfumado de qualquer loção, cheio de adornos e ornamentos dourados, com uma trova na língua e uma canção dolente cortando o silêncio das noites sertanejas enluaradas. E tantos amores embrenhados na cama da terra espinhenta.
Sertanejo de longa história, do passo catingueiro lá desde séculos passados. Desde o século XIX que começou a fazer história até sua saga ter fim já no século passado, depois da bala certeira dada em Corisco, lá pelos idos de 1940. Cangaceiro de bandos primitivos, como os de Lucas Evangelista, o Lucas da Feira; Jesuíno Alves Calado, o Jesuíno Brilhante; Antônio Silvino; e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. E também o bando desgarrado de Corisco, o Diabo Louro.
De características inconfundíveis, vestia seu manto encourado, sua calça lonada, sua preferência azulada, seu brim desgastado na passarela de urtiga e cansanção, ponta de pau e espinho traiçoeira, vereda encoberta e mataria fechada. Dia e noite na luta e sempre no porte altaneiro, ainda que o brilho das joias e o colorido das roupas estivessem ofuscados pela poeira da lide. 
Cabra valente de estética desafiadora para a vida difícil que levava. Chapéu de couro estendido, ovalado e com estrelas estilizadas ou medalhões de metal na porta frontal da aba. Um ou outro usava a jabiraca, que era um lenço envolvendo e descendo pelo pescoço. Encontrar um cabra assim nas caatingas já sabia o que era. Cangaceiro, seu moço, cabra valente sim.
Alpercata de couro cru, mais conhecida como "apracata de rabicho". Cartucheira cortando o peito, também cruzava o couro do embornal do ombro até a cintura. Um cantil também enfeitado, estilizado. Era tudo pesado, desde a roupa e adereços até chegar aos mantimentos que carregava. Falam em mais de vinte quilos. Anéis adornando os dedos, alianças enfeitando o chapéu, cabelos mais alongados, muitas vezes repuxados na brilhantina ou óleo de coco. Costumava carregar peças de ouro e moedas no embornal. Não esquecia o perfume, a gaita ou qualquer outro instrumento. 
O armamento se diversificava, podendo ser revólver, pistola, mosquetão ou fuzil, sem falar no velho rifle Winchester, também conhecido como "papo amarelo", mas sempre acompanhado da faca ou punhal. Uma vez aceito no bando, o nome de batismo dava lugar a um apelido. Dali em diante seria conhecido e chamado por nome de bicho, de pássaro, de elemento da natureza ou de qualquer outra denominação que mais parecesse com o alcunhado. 
Mas falar em cangaceiro é falar principalmente naquele cabra, e também mulher bonita, que serviu ao bando do Capitão Lampião, o mais famoso de todos que enveredaram pelos caminhos nordestinos revirados de trincheiras e respingados de sangue. Até hoje é o bando de Lampião que sintetiza toda a história cangaceira e sua luta. Virgulino foi o maior dos cangaceiros e o seu bando o mais famoso e destemido.
Mas afinal, o que era mesmo esse tal de cangaceiro, era gente ou bicho do mato, pessoa ou desatinado, ser de carne e osso ou uma besta humana em busca da próxima vítima? Cangaceiro vivia com cega maldade, jogando criancinha para o alto e a recebendo na ponta do punhal, estuprando aonde chegava, ferrando quem encontrasse, alastrando todo tipo de terror por onde passasse?
Pelo não se encontra o sim, pela negação se encontra a verdade, pelo que o cangaceiro não era é possível conhecer o que ele foi. E o que ele foi, por mais que se atreva em dizer, sempre estará distante da crueza daquela realidade. Por isso que todo dizer ainda falta alguma coisa a ser dita.
Mas algumas coisas sopraram no vento da verdade e cimentaram na história. Não pela certeza, mas pela lógica do acontecido e hoje tão analisado e lido. Disso decorre não ter sido o cangaceiro um pistoleiro, um jagunço, um celerado bandido, um assassino a sangue frio, um matador de aluguel, um delinqüente qualquer, uma bestialidade desordeira. Contudo, muitos, no exagero e na ignorância, procuram maculá-lo com as maiores infâmias do mundo.

*Rangel Alves da Costa, Advogado e escritorMembro da Academia de Letras de Aracajublograngel-sertao.blogspot.com

 

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