Aquela curva do rio
Publicado em 06 de dezembro de 2020
Por Jornal Do Dia
*Rangel Alves da Costa
O rio São Francisco é sempre um cativante reencontro. Em tempos difíceis, de crises e temores, somente alguns instantes ao seu lado para que a brandura da vida seja reencontrada. E assim que posso vou encontro daquele que ainda tem o dom me colocar em pedestal de leveza e felicidade.
Logo ao amanhecer deste último sábado eu segui rumo ao Velho Chico. Belo São Francisco, que mesmo sem a pujança caudalosa de antigamente, ainda encanta e maravilha a quem sua feição avistar. E foi para esse encantamento que segui viagem.
Ali pertinho. Da cidade de Poço Redondo, no sertão sergipano, até suas beiradas, são apenas 14 km. Primitiva aldeia, antigo porto, lugar que no passado foi de grande fluxo comercial, atualmente Curralinho sobrevive basicamente do que o Velho Chico ainda possa oferecer.
Um fausto sertanejo no passado, mas agora sobrevivendo dos resquícios de outrora. As calçadas altas nem avistam mais as águas se aproximando. As grandes embarcações deixaram de vez o seu cais. O comércio pelas águas desapareceu. Apenas um rio de poucas canoas e de nostalgias e lacrimosas saudades.
O rio que é vida, também era a vida do lugar. Curralinho nasceu pelas águas e pelas águas muito tempo sobreviveu. E ainda sendo seiva e alimento se o próprio homem não cuidasse de represar suas águas, de modificar seu curso, de interferir no seu caminhar. Hoje apenas um rio que passa ao longe.
Como dito, já não oferece como antigamente, pois as águas magras, a falta de peixes e as carências de seu povo, provocam um sentimento de verdadeira aflição. Basta olhar para as calçadas altas agora distantes cerca de quinhentos metros para as águas, para sentir quanto definhamento ocorreu.
Mas nem tudo perdido. O rio ainda corre serenamente belo e ainda escorre o possível da vida em seu percurso. Um rio de passado fabuloso, de tantas histórias, de embarcações grandiosas, de lugares progressistas às suas margens, de caminhos grandes entre as águas. Agora quase apenas o rio ou o que ainda lhe resta.
O que ainda lhe resta é grandiosamente suficiente para deleitar olhares, corações e mentes. O que ainda lhe resta, mesmo não sendo o caudal fabuloso, é a simbologia do rio ventre e vida. O espelho d’água manso, a correnteza sem pressa, o remanso leve, um leito que descortina na curva do rio e vai seguindo em frente com seu destino de vida.
Mesmo poucas, as águas alargam-se como que em imensidão. Suas margens molhadas, cúmplices daquele destino, bebem de sua vida e verdejam mesmo em meio à sequidão sertaneja. Nada mais belo que caminhar por suas beiradas, sentar nas suas ribeiras molhadas e ir navegando através do olhar.
As canoas e outras pequenas embarcações ora são avistadas miudinhas em meio ao rio, ora adormecem silenciosas nas suas beiradas. A rede de pescar é levada apenas pelo costume. A tarrafa é lançada apenas pelo desejo de arriscar. Nunca aparece além de uma piaba ou outro peixe pequeno.
Estar às suas margens é ter diante do olhar um livro aberto. Assim por que aquele rio não é apenas aquele rio. Aquele rio leva em cada água nova o que as águas passadas já levaram, apenas com outra feição. Daí ser possível avistar quase todas as vidas do Velho Chico.
Eu por ali, caminhando devagar ou mesmo adentrando seu leito, de repente me via olhando para trás em direção às calçadas altas. E tão altas assim para que as grandes cheias não permitissem que as residências ribeirinhas ficassem tomadas de águas.
Neste confronto entre as águas de agora e a existência ainda de tais calçadas altas, logo me via imaginando como seria aquela imensidão de águas correndo entre beirais altos, serras e calçadas. Água muita e por todo lugar. E no se u leito, as antigas embarcações passando, chegando, partindo.
Em situação assim, de indescritível pujança, é possível ainda avistar aquelas senhoras arrumadas, bem penteadas e perfumadas, sentadas em suas cadeiras de balanço e de olhos fixos na vida e no percurso do rio. Miravam a curva do rio como se sempre desejosas de que as carrancas despontassem, os apitos ecoassem, as lanchas e os vapores desfraldassem suas bandeiras de chegada.
Quanta saudade eu então senti daquelas mulheres e seus olhares, e suas calçadas, e suas cadeiras de balanço, e seus maravilhamentos com os vultos despontando ao longe, na curva do rio, e logo se transforma em forma viva de adoração. Cada passagem era uma festa.
A curva do rio ainda está lá. O rio ainda desponta de lá. Mas de lá quase nada aparece que possa encantar além do próprio rio. E encanta pelo próprio rio que persiste em existir, mas também pelas memórias que parecem reluzir nos espelhos d’água.
*Rangel Alves da Costa, advogado e escritorMembro da Academia de Letras de Aracajublograngel-sertao.blogspot.com