PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO À DERIVA
Publicado em 06 de setembro de 2020
Por Jornal Do Dia
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos
Em 1994, a banda gaúcha Engenheiros do Hawaii lançou o CD Alívio Imediato. Entre as canções, uma em especial ajuda a entender o atual estado do patrimônio cultural e das políticas públicas voltadas para essa área. Trata-se do trecho inicial da canção Nau à Deriva (faixa 1): "Nau à deriva / No asfalto ou em alto mar / "Perigo, perigo" / Perdidos no espaço sideral".
Quando cheguei à Universidade Federal de Sergipe em março de 2009, na condição de professor do Departamento de História, escalado para lecionar a disciplina Patrimônio Cultural, não tardou para eu me envolvesse e a meus alunos do primeiro período na campanha que trabalhava junto à UNESCO para que a Praça São Francisco (São Cristóvão) fosse reconhecida como Patrimônio Humanidade. Honraria que concretizou no ano seguinte, no dia 1 de agosto de 2010.
Eram outros tempos. Havia compromisso e envolvimento da sociedade civil organizada. Houve restrições à patrimonialização da Praça e ainda há, algumas das quais eu levantei depois na imprensa e artigos, tais como: a dificuldade de acesso à cidade histórica, seja por Aracaju, seja pela BR; a ausência de condições para acomodar os turistas e apreciadores (como alimentação e hospedagem) e a propalada despoluição do rio Paramopama que ainda não aconteceu. Se não eram tempos ideais, havia políticas públicas sérias e comprometidas com o patrimônio cultural.
Passados dez anos, tem sido flagrante a desatenção para com os bens culturais brasileiros, sobretudo nos últimos tempos, por parte das autoridades públicas. O cenário é de "nau à deriva" mesmo e em franco naufrágio, principalmente se levarmos em consideração as questões que irei apresentar em seguida, que longe de estarem pautadas em questões ideológicas ou partidárias, refletem os fatos e a realidade mais dura e mais triste em que esse campo se encontra, onde as perspectivas não são as melhores.
No Brasil, historicamente, quando o assunto é patrimônio cultural, termo utilizado recentemente para designar o conjunto dos bens culturais materiais e imateriais, não há como descolar do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Fundado 1937, o órgão tem prestado relevantes serviços para o país, sobrevivendo aos mais variados cenários políticos.
Para o jornalista Jotabê Medeiros "O Iphan tem se constituído num empecilho histórico à barbárie especulativa e é um organismo forte, colegiado, de caráter eminentemente técnico, com mais de 80 anos de atividade no País. Não importa o governo, sua atuação é técnica e responsável" (24 de dezembro de 2019).
Ultimamente, o órgão tem sofrido ingerências as mais desagradáveis possíveis, com pessoas ocupando cargos técnicos com quase ou nenhuma condição técnica, tudo isso para agradar setores do mercado econômico e a seus interesses, sobretudo, de setores e de pessoas ligadas ao mercado da construção civil e do turismo, notadamente com sujeitos ligados ao seu perfil político e a interesses estritamente mercadológicos.
No que diz respeito ao principal órgão que representa as políticas públicas e protege os bens culturais brasileiro, o IPHAN, o presidente Jair Bolsonaro sempre foi um crítico contumaz, com a tese de que a instituição atrapalha na conclusão de obras do Governo Federal. Nas palavras do próprio, em razão de "cocô petrificado de Índio".
A famosa e infeliz frase está no hall das barbaridades que foram ditas e divulgadas publicamente pela pelo Supremo Federal, no dia 22 de abril do ano em curso, onde, o então ministro da educação, Abraham Weintraub, disse ter ódio à expressão "povos indígenas".
Além de desconhecer completamente a noção de bem cultural e manifestar total desprezo pelos remanescentes de valor histórico e arqueológico e também para com as etnias, o presidente não definiu, claramente, até então, o que pretende a sua administração com relação ao patrimônio cultural brasileiro, positivamente.
Do ponto de vista econômico, os investimentos em ações do IPHAN estão sendo consideravelmente minguados na atual gestão, o que tem dificultado a implementação de ações de salvaguarda e proteção dos bens culturais brasileiros.
Dados dão conta de que esse esvaziamento técnico ocorre no setor desde setembro de 2019, atingindo inclusive os Estados. E que, o IPHAN teve uma redução orçamentária de mais de 50% em relação aos anos anteriores.
Outro problema que atingiu em cheio o IPHAN e as políticas em prol do patrimônio cultural brasileiro foi a tosca cadeia de comando que se instalou com a extinção do Ministério da Cultura. O órgão, que tinha uma relativa autonomia no organograma administrativo de governos anteriores, passou a ser vinculado à Secretaria Especial da Cultura, comandada recentemente pela atriz Regina Duarte, e, por sua vez, a secretaria está vinculada ao Ministério do Turismo.
Nunca é demais lembrar que o desmonte da cultura e do patrimônio cultural teve até pouco tempo a digital do polêmico ex-secretário de cultura, Roberto Alvin, em franco processo de "guerra cultural" ou "cruzada conservadora. Roberto Alvin foi afastado do cargo em janeiro de 2020, depois de publicar um vídeo institucional, para anunciar o Prêmio Nacional das Artes, acusado de usar pronunciamento e layout de cenário com semelhanças às estratégias do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels.
Some-se a tudo isso, as tentativas no Congresso Nacional, por meio de parlamentares aliados ideologicamente ao Governo Federal, de mudanças e adequações de leis e normativos técnicos voltados para o patrimônio cultural, com vistas a atender a interesses de grupos, aqui já citados.Se antes, as principais inimigas do patrimônio cultural eram, muitas vezes, a negligência e a incompetência, agora é a clara intenção de despatrimonializar o máximo de bens culturais possíveis, com a chancela do Estado, aquele que deveria ser o protetor por primazia e excelência do patrimônio cultural brasileiro.
Se antes um bem tombado ruía ou sofria incêndio por falta de verba ou mesmo de vontade política, agora a ideia é impedir novas patrimonializações e procurar formas, inclusive legais, de ruir de uma vez aquilo que atrapalha os interesses de determinados setores do mercado.
O cenário futuro não é animador, principalmente depois do anúncio do Governo Federal que afirmou que irá investir bem menos em cultura para 2021, conforme proposta orçamentária que irá ser apresentada ao Congresso Nacional. Some-se a isto o quadro devastador que a pandemia vem provocando no setor cultural e com quem vive da e de cultura.
Em síntese, é um governo, a considerar o nível de reação das sociedades civis organizadas e o nível de judicialização das ações de cultura, afora as polêmicas as mais constrangedoras, que está assentado sob uma ótica de cultura enviesada que desconsidera não somente o potencial produtivo e artístico da nação, mais de perto sua memória e seus bens culturais materiais e imateriais.
Nesse sentido, nada é tão atual quanto as palavras de Lima Barreto, proferidas nos primórdios do século XX: "Nós, os brasileiros, somos os Robinsons: estamos à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou".