Sem medir as palavras
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Parece até uma miragem…
Publicado em 20 de março de 2021
Por Jornal Do Dia
Rian Santos
O genocida Jair Bolso- naro pretende enqua drar todos quanto o chamem pelo adjetivo devido na Lei de Segurança Nacional, um entulho autoritário dos anos de chumbo. Revela, assim, por força de intimidação, o quanto o Brasil retrocedeu em termos de liberdade de expressão, afirmação dos direitos individuais, civilidade. Já aconteceu antes. Quando os governantes de turno se comportam de tal modo, a melhor resposta é o escracho.
Foi justamente o humor ferino, a inteligência afiada e a boca suja de Roger Moreira que alçou a banda Ultraje A Rigor ao primeiro time do chamado Rock BR – uma idiossincrasia bancada por gravadoras multinacionais, de olho no apetite voraz do mercado brazuca. Um instantâneo de outra época, o documentário ‘Ultraje’ (2019), de Marc Dourdin, realizado em parceria com o Canal Brasil, passa ao largo do clima odiento da política contemporânea para contar essa história.
Parece até uma miragem, mas o Brasil já foi um pedaço do mundo em paz consigo mesmo, onde as pessoas tinham fé no futuro. A música do Ultraje, no limite entre a escrotice pura e simples e uma ingenuidade imberbe, exalava a confiança irresponsável de uma nação cheia de si, com a vida inteira pela frente.
Sinal dos tempos. O mundo girava, então, em outro compasso. Importava desfrutar a liberdade recém conquistada, mesmo com eventuais resquícios autoritários. A disposição para dar com a língua nos dentes, sem pedir licença a ninguém, levou Roger a desafiar a censura, o jabá e até a própria gravadora. A queda de braço não chegou à barra dos tribunais, mas obrigou muita gente graúda a se posicionar. Xuxa, à frente de um programa infantil, fez ouvidos moucos para o vocabulário porco da banda. Jô Soares comprou briga com a direção do SBT para o Ultraje cantar seus palavrões em rede nacional, em alto e bom som, sem medir as palavras.
Em certa medida, sem nenhuma nota de gravidade, a música do Ultraje promoveu uma pequena revolução de linguagem na música brasileira, sufocada até hoje pelas metáforas preciosas da geração anterior, os pais da MPB. Em uma faixa, Roger grita "Eu quero sexo!", em outra confessa não ter o que dizer antes de emendar um refrão com o monossílabo "Cu". A alegria genuína de testar os próprios limites, um ímpeto francamente infantil, colocava a abertura democrática recente à prova. Sem a liberdade de afrontar os moralistas de plantão, sempre fartos de boas intenções, o exercício do voto, por exemplo, seria só mais uma lorota.
Tudo indica, os altos e baixos experimentados desde os dias gloriosos da música com guitarras made in Brasil não fizeram bem às ideias de Roger, hoje identificado com o que há de mais reacionário em matéria de política e comportamento. Polêmicas à parte, no entanto, a música realizada em seus vinte e poucos anos proclamou o direito sagrado à esculhambação. E fez muito barulho.