As multas e fiscalizações estatais devem respeito à legislação brasileira
Publicado em 05 de junho de 2021
Por Jornal Do Dia
* Rafael Henrique Nunes Oliveira
É inegável que a pandemia de Covid-19 mundialmente instalada nos trouxe consequências terríveis enquanto sociedade, essencialmente quando olhamos para o nosso Brasil. Aqui, e com a devida vênia às contrárias opiniões, com nossa caótica gestão sanitária e econômica, impulsionamos os já avassaladores efeitos de uma pandemia.
Os comentários sobre saúde, entretanto, deixemos para aqueles que labutam na área. Nesta oportunidade, tomamos a liberdade de tecer alguns comentários jurídicos sobre a atuação estatal em tempos de Covid-19.
Pois bem.
Se multiplicaram nos últimos meses decretos governamentais estabelecendo normas de conduta para a população, sempre com o bom e necessário pretexto de conter os devastadores efeitos da pandemia. Dentre as medidas estabelecidas à população, necessidade de utilização de máscaras, álcool em gel, distanciamento social, para empresas, controle de acesso, sinalizações, restrição de clientes, e várias outras. Como adiantado acima, não pretendemos analisar, neste rápido apontamento, as qualidades sanitárias de tais medidas, mas apenas chamar a atenção para detalhes jurídicos do atual contexto vivido.
Fato é que, por necessidade, muitas das restrições foram tomadas e estabelecidas em uma velocidade incomum aos nossos poderes, o que, invariavelmente, acabaria por gerar questionamentos no Judiciário.
Não por acaso, a Constituição da República de 1988 estabelece diversas fases para o "nascimento de uma nova Lei". Em tais etapas, a discussão sobre uma nova legislação, principalmente aquelas ligadas a restrições de direitos fundamentais, visa evitar ao máximo prejuízos à população e eventuais litígios, afinal, é o Direito verdadeiro meio de pacificação social.
Como dito, todavia, a pandemia exigiu soluções rápidas, não compatíveis com o ritmo de produção legislativa comumente adotado no Brasil. A aplicação de uma legislação diversificada, produzida às pressas e com a típica qualidade tupiniquim, entretanto, começou a produzir seus reflexos na atividade jurídica, trazendo às claras numerosas lacunas e inconsistências na atuação estatal.
Nesse sentido, não foi raro no último ano nos depararmos com os mais diversos tipos de autuações de empresas e contribuintes sob a pretensa ideia de combate à pandemia. A pergunta mais realizada não era muito diferente entre os clientes: Doutor, li todo o auto de infração, mas, ainda assim, não consegui encontrar os motivos da multa que levei. Como vou resolver ou contestar um problema que não consigo identificar qual é?
Embora simples e comum o questionamento, trata-se da consequência direta (da falta) de um dos pilares da atuação do Poder Público: A motivação.
Ora, tempos de pandemia não são tempos de exceção: A atividade fiscalizatória e a aplicação de sanções, como dito, por mais bem-intencionadas que pareçam ser, dependem do respeito à Constituição da República e da legislação infraconstitucional aplicável à espécie. Em nosso sentir, e, repita-se, com o respeito às opiniões adversas, não merece amparo jurídico o auto de infração ou multa aplicados a qualquer pessoa ou empresa quando não observado o princípio da motivação. Este, aliás, que deve ser entendido como a justificativa legal, e não como argumento de autoridade – Não é por ter a posição de fiscal que o agente pode aplicar a multa ou sanção que acha que deve ser aplicada, ao revés, toda a justificativa deve ser baseada em disposições legais previamente estabelecidas, sob pena de invalidade da autuação.
Em palavras simples, o cidadão ou a empresa precisam entender os exatos motivos que justificaram a sanção aplicada. Um exemplo, talvez, facilite a compreensão: Imaginemos que determinada empresa tenha sido multada em razão de não possuir "sinalização horizontal", segundo assim entendido por determinado agente. No auto de infração, deve o fiscal demonstrar a previsão da legal da exigência de "sinalização horizontal", referida legislação ser completa e efetiva ao ponto de esclarecer os moldes e detalhes da "sinalização" pretendida pelo legislador, e, ainda, entender o autuado, por meio de fundamentação adequada, qual o erro por si cometido, e, em sendo o caso, corrigi-lo ou contestá-lo. Não cumpridos os requisitos mínimos aqui descritos, não entendemos como válida, na acepção jurídica do termo, a autuação aplicada.
Se assim não fosse, como iria o contribuinte, por exemplo, alegar que tal exigência estatal não é válida? Ou pior, como iria a empresa, por exemplo, corrigir seu erro, e, em última análise, contribuir para a boa gestão da pandemia, se nem mesmo consegue compreender qual o erro que incidiu? Tais questionamentos são resolvidos, como anteriormente destacado, pelo respeito à motivação na atuação do Poder Público, exigida pela Constituição da República de 1988, que, mesmo em tempos de pandemia, ainda continua válida.
Ao fim, e para não me alongar, me atrevo a trazer uma possível contribuição ao complexo debate público que envolve a gestão da pandemia: Deixemos a saúde para os profissionais da saúde, a medicina para os médicos, o jurídico para os operadores do direito, e que a motivação verdadeiramente científica, esta pautada em estudos e não em argumentos de autoridade, seja a força motriz das decisões sociais – Deveras, quando bem-intencionadas, as questões e críticas elevam a qualidade do debate e contribuem para uma melhor gerência da maior crise sanitária da história recente mundial.
* Rafael Henrique Nunes Oliveira, advogado, sócio da firma Sobral, Oliveira e Moura Advocacia. Pós-graduado em Direito e Processo Tributário pela Escola Paulista de Direito.