SOB A SOMBRA DE UM PÉ DE LARANJA LIMA
Publicado em 13 de novembro de 2021
Por Jornal Do Dia
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos
Não lembro exatamente o ano, mas acredito que tenha sido na primeira metade dos anos 80. Creio que tenha sido um dos primeiros livros que li na vida. Com limitações financeiras, tomei emprestado na biblioteca do Colégio Cenecista Laudelino Freire, em Lagarto-SE, onde fiz todo o meu Ensino Fundamental, à época, Primeiro Grau. Por incrível que pareça, passadas mais de três décadas, somente agora pude adquiri-lo e não sem demora tornar a lê-lo. Isto, em grande medida, em razão de uma participação que fiz (palestra) num projeto do Colégio Mundial: “Transformando o mundo através da leitura”.
“Meu pé de laranja lima” foi publicado em 1968, por José Mauro de Vasconcelos. Natural de Bangu-RJ, aos 26 dias de fevereiro de 1920, era de descendência portuguesa, criado pelos tios em Natal-RN. Aos 15 anos, retornou para o Rio de Janeiro. Antes de se consagrar como escritor, foi de tudo um pouco: de vendedor de rua a ator de cinema. Chegou a morar em São Paulo e até a tentar concluir o nível superior sem muito sucesso, com dificuldade de se encontrar na vida acadêmica. Morreu aos 64 anos, no dia 24 de julho de 1984, deixando uma obra vasta, notadamente romances.
O romance “Meu pé de laranja lima” é ambientado numa cidade rural, do interior do Rio de Janeiro, nas proximidades da antiga estrada Rio-São Paulo, envolvendo a personagem Zezé, de apenas cinco anos, filho de pai desempregado (Paulo) e mãe que trabalhava numa fábrica de tecidos (Estefânia), os quais sustentavam seus irmãos Glória (a mais velha), Totoca e Luís (caçula). O enredo é belíssimo e gira em torno das aventuras e peraltices ou diabruras do menino Zezé e sua amizade com Minguinho ou Xururuca (um pé de laranja lima que fala com ele no fundo do quintal da nova casa alugada).
Além da criança altamente fascinante, Zezé, dois adultos cumprem um papel muito importante como coadjuvantes da história: Ariovaldo, o vendedor de folhetos de músicas, seu parceiro de rua, que o ajudava a ganhar um trocado além da função de engraxate; e o português rico e idoso, Manuel Valadares. Sem falar no tio Edmundo, fonte de sabedoria de Zezé. Afora outros personagens que traduzem o perfil da sociedade brasileira interiorana do final dos anos 60, tempo e lugares tão ricamente retratados na narrativa peculiar e cativante de José Mauro de Vasconcelos.
A releitura de “O meu pé de laranja lima” me fez entender de uma vez por todas porque esse livro foi tão marcante em minha vida, sobretudo numa época em que eu começava a minha formação escolar. Em grande medida, eu me identifico muito com Zezé: filho de uma família numerosa, com pais que lutaram para me educar; criança prodigiosa, aprendendo a ler e amar a leitura em tenra idade, ao mesmo tempo que era traquina, sempre a aprontar na rua ou em casa e a levar umas boas palmadas; o mesmo complexo de inferioridade; o gosto pela aventura; a introspecção do pensamento; a imaginação fértil e a afeição e apreço pelos mais velhos.
Em “O meu pé de laranja lima”, José Mauro de Vasconcelos usa uma forma toda especial de se comunicar com as crianças e de traduzir seu mundo, ao menos o mundo do contexto de publicação da obra, de pequeninos quase adultos, muito diferentes dos da infância de nossos dias. O autor trabalha com questões sociais, como o desemprego e a exploração do trabalhador; da importância da leitura na formação das crianças e na vida dos adultos (Zezé sonhava em ser poeta com gravata de laço, para enfim poder ler para a mãe que não era alfabetizada); denuncia o racismo presente nos ambientes, a exemplo das escolas; além de usar a música como recurso literário.
Por fim, o uso de frases de efeitos, repletas de muito ensinamento, aprendizagem e provocações, entre as quais, destaco: 1) “Não passava ninguém, só o tempo”; 2) “Não espero nada. Assim, a gente não fica desapontado”; 3) “E alguns foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros”; 4) “Minha voz era um rio imenso de ternura”; 5) “O sono faz a gente esquecer tudo”; 6) Vazio como o meu coração que flutuava sem governo”; 7) “A fábrica era um dragão que todo dia comia gente e de noite vomitava o pessoal muito cansado”; 8) O pensamento cresce, cresce e toma conta de toda a nossa cabeça e nosso coração”.
Nas telas, teve inúmeras adaptações: um filme em 1970 e novamente em 2012, com a participação de José de Abreu no papel do Portuga; e três telenovelas, TV Tupi (1970), TV Bandeirantes (1980 e 1998). O romance teve várias edições e publicações em língua estrangeira, inclusive na Coréia do Sul. Além de vários prêmios, homenagens e críticas elogiosas. Certamente, está entre as melhores histórias infantis da literatura brasileira, a qual segue recomendada para as novas gerações, tão carente de melhores perspectivas, sonhos e oportunidades.