Prenhe de amores e saudades
Velhos festivais
Publicado em 02 de dezembro de 2022
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br–
Cada paralelepípedo da velha cidade esta noite vai se arrepiar, como diria o sambista. Em verdade, todas as pedras da cidade histórica estão arrepiadas desde ontem, quando teve início a programação do Festival de Artes de São Cristóvão.
Caindo de velho, doente de preguiça, o jornalista que acena aos leitores deste Jornal do Dia não botou os pés lá, mas sabe bem da importância econômica e simbólica do evento. Aprendeu comjornalistasainda mais velhos. Luciano Correia, presidente da Funcaju, compareceu à primeira edição realizada após um longo período de tambores calados, sob a gerência do colega e amigo Carlos Cauê, há quase 20 anos. E aproveitou a oportunidade para lembrar os amores vividos e sofridos na Cidade Mãe.
Ao contrário de nós dois, muito melhor e mais rijo do que eu e ele, o texto de Luciano é velho, mas ainda dá para o gasto. E por isso é reproduzido abaixo, emocionado como convém à pena desaforada de um excelente jornalista, prenhe de ternura e saudades.
Alegria, alegria …
Quando Caetano Veloso cantava em outros festivais, os ares dos grandes encontros culturaisde Águas Claras, Garanhuns e Woodstock chegaram à bucólica São Cristóvão de Sergipe. No começo dos anos 70, ainda tão perto da Tropicália e já tão longe do agora. O agora, aliás , é um desafio para Carlos Cauê, quem pilota este renascido FASC. Mas os de antes merecem uma câmera para trás, um travelling de saudades e soluços. Gemidos nas barracas armadas na praça da ladeira. Um “beise” (alguém ainda sabe o que é isso?) rolando de mão em mão.
Eu só queria impressionar Ró, Rosângela, morena de olhos miúdos, quase índia, cabelos pretos até as ancas, de cheiro eternamente gravado nos meus sonhos, quase casada com Tonho, colega de Ufba e de Residência Estudantil do Corredor da Vitória. Minto, era casada, sim. Mas naquele tempo, como haviam festivais de artes, haviam relações semi-abertas, onde cabiam paixões fora de casa. Ró foi minha maior descoberta e coincidia com o olhar sobre um mundo novo que se abria, de artistas e artes, de Glauber Rocha e teatro de rua. A vida, afinal, podia ser diferente, sim .
Éramos vários, de diferentes cursos da então irrequieta Federal da Bahia. De tendências que iam dos libertários aos comunistas de carteirinha. A esquerda odara. Foram embora no último dia, varridos pelo bota fora do dayafter,impregnados de um mundo louco e colorido. Eu, embriagado de uma paixão magnética.
E outros vieram depois, com Moreira da Silva, 97 nas costas, sambando feito um malandro e passando cantada nas meninas descoladas (quem manda se meter com velho safado?). Ou antes ainda, no palco do Convento, vendo as danças modernas de fora e a dança moderna de LuSpineli. Os tambores ecoando nos becos, a Aertando contas com o passado de uma cidade que escravizou negros e agora se rendia às evoluções de Erê, furando o infinito com bruscos movimentos. A UFS fazendo vanguarda, esbanjando charme com Verena, Sandra, a menina Del Alencar, paixão platônica do meu primeiro Fasc. A poesia de Mara Lopes. As aparições do “Reitorzinho” Luiz Eduardo Oliva , ou do reitor Cajueiro, do violão de Cidão ou das vozes do Cata Luzes. O PT pintando na praça, recém nascidoe maldizendo do “Partidão”. O DCE revolucionário nas barbas de Clímaco César. A Polícia Federal sempre atenta a nos vigiar (claro , que seria de nós se eles não ligassem pra nossa revolução? Íamos todos parar no psicólogo).A Praça da Cachaça a cumprir sua função metafísica: acomodando todos , embalando-nos nos vapores de álcool e resolvendo romances. Porque o festival era de arte mas ninguém era de ferro.
Foi assim.