Voz suave, omoplatas incomensuráveis
In memorian
Publicado em 18 de março de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
Desconfio da originalidade da observação, atada a um dado dos mais evidentes. Ainda assim, afirmo com ar de grande estudioso: a memória é a única matéria do interesse de Gabriela Caldas.
A sinopse de seus filmes talvez despiste os distraídos. Assim, em letra de fria descrição, ‘Chica da Silva’ (), realizado a quatro mãos com a parceria de Sérgio Borges, se atém à história e aos contornos do Bairro Industrial. ‘A véia do shopping’, por sua vez, lança luz sobre a vida do último tipo urbano flagrado nas ruas de Aracaju. ‘O povo da Atalaia’, lançado às vésperas do aniversário de 168 anos da capital sergipana, comemorados hoje, se entregaria já a partir do título. Nos três casos, contudo, a busca por uma memória perdida impregna cada aspecto da produção, desde a fotografia, até a narração em off.
‘O povo da Atalaia’, aliás, é dedicado a um personagem ilustre, merecedor de uma crônica deliciosa, assinada pelo também saudoso Amaral Cavalcante.
Segundo o poeta, o Bar do Manequito era um templo homérico, dedicado às transgressões mais malucas. O seu dono, velho pescador, “um preto retinto, de manoplas incomensuráveis e voz suave, idílico, contando coisas do mar, difíceis de acreditar; arraias que arrombavam o mundo, caranguejos dançando gafieira, camarões de barba branca e tempestades dignas de qualquer Ulisses”.
Tergiverso, no encalço de minhas próprias saudades. Começo por uma crítica, termino em crônica sentimental. Venho do audiovisual até tropeçar na melhor Literatura de botequim já parida à beira de nossas praias. Ao fim e ao cabo, contudo, imito a própria Gabriela, por artifício involuntário de metalinguagem. Também ela, por meio de seu trabalho, depoimentos colhidos, personagens, mostra-se prenhe de memórias alheias, tno rumo de nostalgias esmaecidas, os olhos cozidos em fotografias amareladas.