Um gênio.
Uma flor de cemitério
Publicado em 14 de junho de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos – riansantos@jornaldodiase.com.br
Obras póstumas rescendem a cadáver. Seja um romance de Roberto Bolaño, tão prolixo quanto divertido, seja uma canção de poucos minutos com a marca dos Beatles.
Entre todas as virtudes da chamada cultura pop, a ausência de cerimônias com o produto do esforço artístico é das mais rentáveis. Bárbaros, incultos e até mal educados, há artistas podres de rico graças a um feito francamente estúpido, pobres de talento por toda a vida. Caem no gosto do populacho, entretanto. Nasceram com a bunda para a lua.
Este não é o caso de Paul McCartney. Cantor, compositor, instrumentista de mãos cheias, um dos maiores baixistas de toda a história do rock, ele jamais precisou contar com a sorte para ganhar a vida. Esta lhe sorriu, no entanto. Paul McCartney vive até hoje como uma espécie de Mozart com os bolsos forrados.
Em dez anos de atividades, os Beatles gravaram 14 álbuns. Depois disso, Paul lançou mais um punhado de trabalhos obrigatórios, com a própria assinatura. Isso de buscar a voz de John Lennon numa fita demo esquecida no fundo do baú, com auxílio de inteligência artificial, feito anunciado com certo alvoroço pelo beatle octogenário, cheira igual a uma flor de cemitério. Quando a revolução das máquinas vingar, desempregando, subjugando, espoliando pedreiros e músicos, professores e ginecologistas, a canção esquecida dos quatro meninos fabulosos de Liverpool talvez soe como a própria Marselhesa.
John Lennon e Paul McCartney criaram uma obra imensa, em volume e beleza, documentada em discografias preciosas. Ninguém ganha com o rescaldo de inspiração, suor e lágrimas, a manifestação do gênio, em suma, nas entrelinhas de ‘Let it be’.