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DEUS E A ESCALA 6X1


Publicado em 19 de novembro de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Lelê Teles
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Tomava eu o meu corotinho colorido, sentado no meio-fio da quebrada quando, do nada, aproximou-se um sujeito maltrapilho.
Pediu-me um cigarro.
Seus olhos fundos olharam desejosamente para a minha garrafinha de corote.
Saquei outra do bolso do capote, lacrada, e lhe ofereci; sentou-se.
“Valeu, professor”, agradeceu-me.
“O trabalhador se esfola o dia todo e não tem grana pra comprar uma camisinha, imagina pra pagar uma puta”, queixou-se o pobre-diabo.
Magro como um faquir, o sujeito ostentava uma esvoaçante cabeleira desgrenhada e uma barba engordurada e selvagem.
Aparentava uns 50 anos, mas podia ter de 30 a 35.
Devia trabalhar desde os 11, nunca passou um fim de tarde ouvindo o canto dos pássaros à sombra de um parque arborizado, nunca foi ao cinema ou ao teatro, nunca teve grana pra entrar numa dessas modernas arenas de futebol…
Severino perdeu a esposa porque perdeu a libido, chegava em casa exausto, o pau murcho, a bunda mole, a saúde mental destruída.
Aquilo nem era um homem, era apenas uma ferramenta de trabalho.
Cuspiu, deu um longo gole no líquido de fogo – “ahhhhh” -, e acendeu o cigarro.
Em seguida, desembestou a falar.
Uma fala cansada e cheia de revolta.
Que era pedreiro, que havia sacolejado por duas horas dentro de um ônibus lotado e que logo mais, cedinho, teria que fazer a mesma viagem de volta ao trabalho.
Disse que eu é que era feliz porque amanhã, sábado, não teria que trabalhar.
Perguntei se, por acaso, ouvira falar sobre a proposta de acabar com a desumana escala seis por um.
Disse que soube no trabalho, vendo um vídeo que recebera pelo zap.
Perguntei o que achava da proposta.
“Deus é contra”, ele me disse.
Espantei-me: “homem, como diabos deus pode ser contra um diabo desses?”
A lua já ia alta, iluminando um céu negro e estrelado, a rua, vazia de gentes, era ocupada pelo vento fresco e serenoso, um cachorro sujo e de olhar tristonho se coçava sob uma marquise.
Gorete, a rapariga das canelas finas, caminhava toda sinuosa e insinuante pela beira da pista mal iluminada, os peitos quase de fora, a boca lambuzada de batom, farejando algum cliente encachaçado…
Enquanto isso, o pedreiro tagarelava.
Que se chamava Severino e que estava ajudando a construir a casa de um empresário evangélico, dono de uma pequena igreja de bairro.
E que foi o ricaço quem lhe falou sobre Deus e Erika Hilton.
Disse que o sapatênis visitava a obra todos os sábados, logo cedo, lia um trecho da bíblia pros peões e abençoava o dia de trabalho deles.
“Sabe por que que o patrão só vai lá na obra aos sábados, professor?”, perguntou-me o infeliz.
E ele mesmo respondeu.
“Porque a empresa dele não abre nem no sábado e nem no domingo.”
O mestre de obras, continuou o tagarela, havia sugerido ao patrão que eles só trabalhassem até sexta, porque os trabalhadores tinham problemas em pegar condução no sábado e que aqueles miseráveis renderiam mais se pudessem descansar.
O empresário identificou ali uma fala subversiva, uma insolência hiltoniana, e resolveu contra-atacar: arrancou a bíblia do sovaco e leu o gênesis 2:2-3.
Aquele trecho que fala que Deus fez o mundo em seis dias e que no sétimo ele descansou.
Captei a falta de ética daquele protestante e protestei:
“É um bom argumento, Severino, mas pense comigo, se Deus que é Deus, pai de todos os pais, infalível e invencível se cansou em seis dias de trampo, imagina você.
Severino olhou pras canelas magras da gorete, pensativo.
Eu aproveitei pra tagarelar.
“E olha que Deus não trabalhou debaixo de um sol desgraçado como você, Severino.”
Severino, com seus olhos tristes, lambia a sombra seminua da gorete, projetada na poça de lama.
“Cê tá ligado, Severino, que Deus só inventou o sol depois que terminou o serviço dele, né?”
Agora fora Severino que se assustara.
“Sim, homem, Deus fez o sol pra descansar na sombra, antes disso tudo era treva.”
Severino teve um sobressalto:
“Oxen, e como é que Deus trabalhou no escuro, professor?”
Gorete, acostumada a labutar na penumbra, deu uma sonora gargalhada, tossiu e quase se engasgou com o pigarro.
Severino se sentiu enganado pelo patrão, ele se deu conta de que, no início dos tempos, nem Deus havia inventado o sol e nem os homens ainda haviam inventado os dias da semana, uma vez que deus sequer havia inventado os homens.
A alma de Severino voltou pro corpo, ele era um homem novamente.
Gorete se aproximou, lasciva, com 90% das pernas expostas ao relento, e pediu fogo pro cigarro.
Baforou a primeira fumaça na cara magra de Severino, deu uma gargalhada pombagírica e voltou pro seu posto, se equibilibrando nos saltos feito um papagaio.
Enquanto o pedreiro admirava a magreza da rapariga, eu buscava um versículo no gugo…
Achei.
“Escuta essa, severino, Pedro 3:8, amados, não se esqueçam disso, um dia com o senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”.
“Oxen”, calculou o pedreiro, “então Deus não trabalhou seis dias coisa nenhuma, eram seis dias pra ele, mas pra nós era como se fosse seis mil anos!”
Balancei a cabeça afirmativamente.
Eu não estava querendo jogar meu parceiro contra Deus, queria lançá-lo contra o patrão.
“A bíblia também diz, Severino, que Deus inventou o trabalho pra punir Adão.”
“Com mil cabruncos, quer dizer que o trabalho é um castigo, professor?”
“Exatamente, meu caro.”
Severino deu outra golada.
“A palavra trabalho, Severino, vem do latim tripalium, que era uma chibata usada pra fustigar o lombo dos miseráveis.”
Severino matou o corote numa longa golada.
“Tu bem o sabes, severo, que é por isso que durante a escravidão só os pretos trabalhavam.”
Severino teve insight: “Peraí, se Deus inventou o trabalho pra punir Adão, então o que ele fez, ao criar o mundo não foi trabalho.”
Não tive como discordar do pedreiro.
Gorete, cansada de caminhar pra lá e pra cá, veio se sentar com a gente pra aquecer o corpo seminu.
Deu uma talagada na minha garrafa, olhou pro pedreiro e ensinou: “A profissão, Severino, é a primeira prostituição do mundo.”
Por um instante, Severino se viu na obra, de perna de fora, salto alto e batom vermelho, tentando seduzir o patrão no intuito de levar uma ração pra casa.
No meio desse pensamento absurdo surgiu uma viatura da polícia.
Os peêmes vieram tirar um sarro com a Gorete.
O cabo, freguês assíduo, lhe trouxe um espetinho de gato.
Gorete agradeceu e mastigou a iguaria com um sorriso saliente.
Ela sabia que os clientes de farda não apareciam todos os dias porque eles não trabalhavam todos os dias.
A puta, querendo deixar o pedreiro ainda mais encabulado, perguntou ao militar:
“Qual é a sua escala de trabalho, peçanha?”
“Eu trabalho vinte e quatro por quarenta e oito”, respondeu o pé-de-botas.
“Ou seja, você trabalha um dia e folga dois, como um  deputado.”
Todos gargalhamos, menos Severino.
O infeliz se deu conta que até a Gorete fazia o seu  horário de trabalho e que ali só ele tava na escala seis por um.
E já um pouco embriagado começou a contar nos dedos: “só trabalham seis por um o pedreiro, o porteiro, o padeiro, o garçon, a doméstica, a babá…
Um carrão parou na esquina, Gorete se levantou e foi até lá, meteu a cabeça pela janela, sorriu, deu a volta e entrou no carro.
Severino reconheceu o automóvel.
Era seo Orácio, o patrão evangélico que aproveitava a noite de sexta-feira pra se divertir, dando uma parcela do dinheiro dos fiéis para uma prostituta.
A alma de Severino voltou a abandonar o seu corpo.
Aliás, corpo não, uma carcaça cansada.
Palavra da salvação.
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* Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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