O neoliberalismo e a separação entre o econômico e político
Publicado em 21 de dezembro de 2024
Por Jornal Do Dia Se
* Emir Sader
“No capitalismo, o econômico é, portanto, não político, e o político, não econômico.” O que quer dizer com isso Nancy Fraser, em seu artigo “A impossível democracia de mercado”, publicado pelo Le Monde Diplomatique de dezembro de 2024?
A autora, uma das maiores estudiosas do neoliberalismo e do capitalismo contemporâneo, cujo último livro, “O capitalismo é um canibalismo” sairá em janeiro na França, de que o seu artigo é uma parte.
Para ela, a crise atual não se origina exclusivamente na esfera política. A crise atual é a forma que assume a contradição que pode ser considerada a origem da crise democrática atual. Sua manutenção é uma condição para a acumulação contínua de capital. Este processo tende a desestabilizar os próprios poderes dos quais depende.
A topografia institucional do capitalismo separa o econômico e o político. Cada um é atribuído a uma esfera distinta. O poder de organizar a produção é privatizado e confiado ao capital. A tarefa de governar recai sobre o poder público.
Daí que ela conclui que no capitalismo e’. portanto, não político, e o político, não econômico. Esta separação, ao submeter vários aspectos da vida social ás “leis do mercado”, priva a sociedade de decidir coletivamente o que queremos produzir. Também nos priva dos meios para o destino do excedente social, a relação com a natureza e sua relação com a produção. Em razão de sua própria estrutura, o capitalismo é, portanto, fundamentalmente, antidemocrático.
Ao longo do século XX, o capitalismo gerido pelo Estado, que sucedeu ao regime do laissez-faire, após a crise de 1929, utilizou o poder público para conter ou desacelerar a crise. A estabilidade foi restaurada por várias décadas, mas a dinâmica capitalista, levou o capital a redobrar os esforços para libertar o mercado da regulação política.
Foram reformuladas as relações entre o Estado e o mercado. Os bancos centrais e as instituições financeiras mundiais substituíram os Estados no papel de árbitros de uma economia cada vez mais globalizada. O regime atual permite que o capital financeiro imponha restrições aos Estados e aos cidadãos em benefício direto dos investidores privados.
O capitalismo é a era da ‘governança sem governo’, a era da dominação sem fachada de consentimento. Isso teve como principal efeito de esvaziar o poder do Estado de sua substância. Questões antes consideradas como pertencentes à ação política do Estado tornaram-se áreas reservadas ao mercado.
Aquilo que é chamado de déficit democrático é parte inerente do capitalismo financeirizado. As disfunções políticas desse capitalismo não são apenas objetivas. Elas encontram um correlato subjetivo, quando forças de direita conseguem atrair a eleitores trabalhadores, prometendo retomar seus países do capitalismo global.
A crise atual não será resolvida sem turbulências, segundo Nanci. A direita não tem soluções a oferecer, enquanto as forças progressistas não conseguem desmistificar a farsa de como as forças do grande poder econômico são as que geram a crise.
Crises como esta representam, na sua opinião, momentos decisivos em que a possibilidade de agir sobre a própria forma de vida social está ao nosso alcance. Surge então a questão: quem guiará o processo de transformação social, em benefício de quem e com quais objetivos? Esse processo se deu no passado e acabou beneficiando principalmente o capital. Devemos, segundo Nancy, nos colocar o desafio de apontar o verdadeiro culpado e desmantelar a ordem disfuncional e antidemocrática que é o capitalismo.
* Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros