A dimensão humana na obra de Lelé
Publicado em 03 de junho de 2014
Por Jornal Do Dia
* Adalberto Vilela
"E tudo isso, vale a pena? " Muito provavelmente essa pergunta tenha passado pela cabeça do jovem Lelé quando, aos 25 anos de idade, deixou o Rio de Janeiro para trabalhar na construção de Brasília. Em 1957, a cidade não passava de um grande canteiro de obras em meio à imensidão implacável do Planalto Central. Lelé veio, assim como outros profissionais, impulsionado por um sonho do qual se apropriou. Não era o sonho dele. Era o sonho de Dr. Lucio, de Oscar, de JK, e em certa ocasião me confessou: "Mas eu fui assim mesmo, sem nenhuma convicção de que eu seria útil".
Ledo engano. Não foi apenas útil, mas essencial. Sem Lelé provavelmente não teríamos chegado ao estágio de desenvolvimento em que se encontra a arquitetura brasileira hoje. Suas pesquisas impulsionaram outras pesquisas e trouxeram soluções inovadoras, sobretudo no campo da pré-fabricação. Autor de uma obra vasta e extremamente diversificada, Lelé nos deixou um valioso legado a ser preservado e divulgado. Embora tenha ganhado notoriedade com as obras dos hospitais da Rede Sarah, sua atuação extrapola a área da saúde e atinge as escalas menos prováveis, como um simples banco de praça, ou mesmo parafusos com fins ortopédicos.
O período em que Lelé esteve envolvido com a implantação da UnB, apesar de curto (1962-1964), teve um papel fundamental na complementação de sua formação e aperfeiçoamento das técnicas de racionalização ensaiadas no canteiro da 108 Sul. O caráter de modernidade dado aos Galpões de Serviços Gerais (SG-09, SG-11 e SG-12), de 1962, e aos prédios da Colina, de 1963, está descrito nas formas simples e no método construtivo racional empregado nos processos de montagem. Os primeiros anos da década de 1960 na UnB foram anos de experimentação e avanços no campo da pré-fabricação. No centro dessa efervescência construtiva estava Oscar Niemeyer e sua equipe do CEPLAN.
Indicado pelo próprio Oscar para ocupar o posto de Secretário Executivo do Centro de Planejamento, Lelé ainda lecionava a disciplina Técnica da Construção no antigo ICA-FAU, além de coordenar a pós-graduação da Arquitetura. Sua contribuição deixou marcas indeléveis na Escola que ajudou a criar. Lelé ainda nos ensina muito através de seus prédios e dos inúmeros componentes pré-moldados que projetou e detalhou, e que hoje compõem um acervo de grande relevância arquitetônica, que é o próprio conjunto construído da Universidade.
Diante dos percalços inerentes à profissão, conduziu sua própria trajetória no método da tentativa e erro. Costumava dizer que nós, arquitetos, deveríamos errar, e que aprender com o erro faz parte de nossa experiência. Ao assumir essa premissa, Lelé parte para uma prática baseada na constante experimentação, onde evolução é palavra de ordem. O sentido de melhoria, aperfeiçoamento e simplicidade foram atributos que buscou na arquitetura e que, felizmente, já trazia dentro de si como ser humano. Que profissional deixaria de assinar o projeto da sede de uma grande multinacional na Capital Federal para se dedicar à construção de Escolas Transitórias no interior de Goiás? Os projetos de Abadiânia, desenvolvidos entre 1982 e 1984 na gestão do prefeito e amigo Vander Almada, tornou-se, segundo Lelé, uma das experiências mais marcantes de sua trajetória enquanto arquiteto.
Lelé sempre acreditou no caráter social e no poder transformador da arquitetura, e disso fez o mote de sua atuação. Projetos engajados com a realidade do país e com os meios disponíveis foram, ao meu ver, o grande trunfo de sua arquitetura, apresentada sempre de maneira racional, legível e extremamente didática. Seu envolvimento com as ações de participação e mobilização popular em Goiás surgem como reflexo daquilo que havia experimentado em Salvador, na época da Companhia de Renovação Urbana, a RENURB. E parece ter gostado, pois nunca mais abandonou o espírito altruísta na hora de conceber seus projetos.
A arquitetura de Lelé é generosa como a mão de Le Corbusier em Chandigarh, aberta para doar, aberta para receber. E nessa troca, somos nós os grandes beneficiados. Da passarela ao abrigo de ônibus, do hospital ao tribunal, o humanismo de Lelé é aliado da técnica na busca por uma arquitetura bela e socialmente mais justa, independentemente de fatores como escala, contexto e cliente.
Ao final, percebo que valeu a pena sim, Lelé. Sua coragem e entusiasmo com a vida, com os amigos, com a música e com a arquitetura provaram que nunca tiveste a alma pequena, pelo contrário, era grande como a cidade que ajudou a construir com suor, amor e dedicação.
* Adalberto Vilela é arquiteto, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasiília