A FESTA CONTINUA
Publicado em 09 de março de 2019
Por Jornal Do Dia
Após as cinzas da festa e do ser, retorno a dura realidade numa quinta-feira qualquer. Como companhia, a ressaca no corpo, na alma e na dura sobrevivência no mundo real. O sonho acabou, os pesadelos não se foram. Restam os proféticos desafogos e os mimetismos sofisticados da arte
* Manoel Moacir Costa Macêdo
A maior festa popular do Brasil não acabou na quarta-feira de cinzas. Continua, com um "gosto de quero mais". Em algumas praças, foram sete dias de festejos. No "jeito brasileiro de ser", o ano começou em sete de março, não no universal primeiro de janeiro. Especificidade tropical. Mais uma das nossas "jabuticabas". Por isso "somos assim". Generosidade para quem vive abaixo da linha do equador, no morro, na planície, no planalto, no asfalto e na ladeira, onde "deus é brasileiro".
Balanços de mortes, acidentes, prisões, agressões, estupros e drogas são registradas sem surpresas e indignações. Encobertas pela embriaguez consentida e assédios de "não é não". O "sim é sim", cumplicidade do tudo pode, uma suposta alegria libertária. A cada carnaval, recordes são comemorados, como se uma morte a mais ou a menos justificasse a banalidade da vida. O trânsito e a violência matam tanto quanto as guerras insanas. Jovens são cruelmente ceifados todos os dias, o ano todo. Mais mortes ou menos mortes de negros, LGBT e excluídos são constantes, com "festa ou sem festa".
Outros saldos são comemorados: os gastos dos foliões, a ocupação dos hotéis, os trios elétricos, os blocos, os turistas, os ritmos, os artistas, os subempregos e convidados ilustres, entre outros números vazios de solidariedade, justiça e "suor humano". Os luxuosos camarotes com Vips e Socialites, apartheid entre ricos e pobres, enclaves protegidos do povo, numa contradição do festejo popular e aberto aos comuns. A retórica ampliada nos sons, ritmos e "reforço condicionado" da autoestima, numa desigual massa humana carente dos elementares recursos do viver no dia seguinte. Aritmética vazia de piedade e altruísmo. Dilema contido com potencial explosivo. Magia da cultura, arte, política e interesses, numa mistura de sentimentos, poder, fantasias e instintos.
Anestesiados por números e discursos, não são contabilizados os sofrimentos, tristezas e dores. A ocupação dos espaços públicos por profissionais blocos, afoxés e arrastões, restritos aos donos de abadás, num mercado lucrativo, passam despercebidos. Moradores, idosos, crianças, doentes e céticos da festa pagã, são violados nas rotinas e intimidades. O direito constitucional de ir e vir, subtraído e vilipendiado. Tudo iluminado por luzes, cores, e holofotes nos ídolos, artistas, políticos e intelectuais da festa. A parte menos comercial, não menos ingênua. Escondem na imensidão da massa, os mercadores de ilusões, os acumuladores dos lucros, e os comerciantes de alegrais efêmeras, vendidas como se mercadorias fossem numa sazonal festividade que não para de crescer.
Após as cinzas da festa e do ser, retorno a dura realidade numa quinta-feira qualquer. Como companhia, a ressaca no corpo, na alma e na dura sobrevivência no mundo real. O sonho acabou, os pesadelos não se foram. Restam os proféticos desafogos e os mimetismos sofisticados da arte. As estatísticas reais continuam, as mesmas ano após a ano, carnaval após carnaval. 7,4% da população brasileira vive com menos de 140 reais por mês, quase dois milhões de pessoas entraram para a extrema pobreza na última festa carnavalesca. O número de brasileiros na extrema pobreza aumentou de 6,6% da população em 2016 para 7,4% em 2017, ao passar de 13,5 milhões para 15,2 milhões.
Curioso, a maior parte dessa população, mais de 25 milhões, estão na região Nordeste, onde canta o galo da madrugada, efervesce o frevo, o maracatu, os tambores, o axé, e as multidões arrastadas pelos contagiantes e seletivos blocos e trios elétricos. A "festa continua", ano que vem tem mais.
* Manoel Moacir Costa Macêdo, Engenheiro Agrônomo, Advogado, PhD pela University of Sussex, Brighton, Inglaterra