A FESTANÇA DO POVO E OS CARNAVAIS DE ESCÂNDALOS
Publicado em 18 de fevereiro de 2018
Por Jornal Do Dia
A festa do povo acabou. Na folgança das ruas ao embalo dos ritmos acelerados o povão esqueceu agruras, sufocou tristezas, desabafou na liberdade dos gestos, na transgressão de limites do cotidiano, ou na licenciosidade de ânsias reprimidas, tudo aquilo que o sufoca, oprime e também revolta. O carnaval é o divã que o brasileiro furtou de Sigmund Freud, dispensando o analista, e o multiplicou aos milhões para o uso coletivo, democrático, e sem repressões que constranjam.
Na quarta-feira de cinzas após o alongamento da folia no ultimo arrastão, uma espécie de letargia se espalha. Seria um cansaço misturado com lassidão, indolência, e apatia. O carnaval, a festa do povo, é como se fosse a válvula que alivia a carga de débitos sociais na panela de pressão do dia a dia do trabalhador, o cotidiano de violência, do transporte ruim, do hospital sem vaga, das contas de luz, do salário encolhido, do subir e descer dos morros onde ficam as favelas, entre elas a Rocinha, aquela, que Bolsonaro quer metralhar lá de cima, com helicópteros, quando for presidente.
O carnaval é o nosso antídoto contra a convulsão, a revolta social, o terror revolucionário. Quem criou o antídoto foi exatamente a maior vitima da panela de pressão prestes a explodir: o povo. A elite torceu o nariz, no começo até mandou reprimir. Depois aderiu, mas guardou a devida distância nos seus guetos de luxo, os clubes, os salões sofisticados onde faziam bailes à fantasia. Nas ruas o povo ainda levava pau da policia, quando entendiam que a brincadeira passava dos limites. Mas a fuzarca cresceu, tomou as ruas, e a elite acabou por render-se àquela criação da ¨gentalha¨. No Recife, por exemplo, a rançosa casta dos engenhos, que se isolava no Cabanga, no Internacional, tem hoje seus bisnetos frevando no gigantesco Galo da Madrugada. No Rio o baile do Copa esvaziou. Em chão tropical sambar de smoking chega a ser um acinte, ou incômodo insuportável. O carnaval adequou a moda ao clima dos trópicos, simplesmente sintetizando a roupa, confinando-a quase ao espaço das genitálias, ainda o tamanho que resta dos nossos costumes, ou duvidosos pudores. Restava, por que em alguns episódios sumiu por completo. Nisso, os puritanos de olhos vesgos enxergam o sinal dos tempos, e ouvem trombetas anunciando o fim. Já se foram mais de dois mil anos, desde quando os romanos, orgulhosos dominadores do mundo, faziam suas bacanais, saturnais, lupercais, esta, coincidentemente em fevereiro.
Surgia o espaço dos dias licenciosos, que resistiu pelos séculos, atravessou a sombria Idade Média, onde crepitavam fogueiras assando hereges, enquanto os cardeais e seus acólitos faziam ímpias orgias de sexo coletivo em seus palácios.
Aquelas cenas dos jovens e musculosos mancebos, seminús ¨ajoelhando-se solícitos¨ sobre o asfalto quente de uma rua de Salvador em surubas homoeróticas, não pode ser vista como um ato libertário e de demolição de preconceitos, apenas, um desnecessário gesto de animalização do sexo, afrontando a normalidade das coisas, e assim ampliando o furor do fanatismo homofóbico.
Aqueles a quem o carnaval tanto incomoda, apegam-se a algumas cenas de violência ou escândalo para engrossar o argumento moralisteiro. A esses senhores de face carrancuda a descontraída alegria muito os incomoda.
Talvez, nem tenham consciência de que o carnaval os tem livrado do massacre das massas que se tomariam de fúrias incontroláveis caso não houvesse a ilusão do carnaval e a esperança de que outros irão acontecer, enquanto, no tempo de espera, repetem-se estes sim, os degenerados carnavais de escândalos, que assolam a República.