A firmeza na fé
Publicado em 05 de junho de 2018
Por Jornal Do Dia
* Raymundo Mello
(publicação de Raymundinho Mello, seu filho)
O pôr do sol da terça-feira 29/05 trou- xe-nos a notícia da Páscoa definiti- va de ‘Dom Luciano José Cabral Duarte’. À sua memória dedico este artigo de hoje.
Dom Luciano tinha imensa confiança em meu pai. Registro um fato, fruto desta confiança.
O programa "A Hora Católica", na ‘Rádio Cultura’, era apresentado, aos domingos, por ele, que não abria mão do horário para ninguém – era da sua competência aquele "diálogo" com as ovelhas do seu rebanho. Mas, exercendo funções fora do estado, por incumbência da própria Igreja, por vezes precisava viajar.
Certo dia, chama meu pai na ‘Cúria’ e diz: "Raymundo, quando eu estiver viajando, você apresentará a Hora Católica, me substituindo. Começa já neste domingo!". Meu pai, estupefato com o peso da incumbência, tenta fazê-lo desistir da ideia: "Dom Luciano, eu não tenho preparo intelectual suficiente para lhe substituir, existem pessoas mais capacitadas". Dom Luciano lhe responde, com a mão direita sobre seu ombro: "Pode ser até que tenha gente mais preparada, mas não com o amor e o zelo que você tem pela Igreja de Jesus Cristo, de Maria Santíssima e do Papa. Está decidido: será você!". E meu pai, temeroso: "Mas, Dom Luciano…". Foi interrompido: "Estou lhe pedindo ‘In nomine Domini’ (Em nome do Senhor)". Neste momento, meu pai rendeu-se: "Bem, se o senhor me pede ‘In nomine Domini’, eu não posso fazer outra coisa senão aceitar".
Então, sempre que o Arcebispo viajava, lá ia ele apresentar o programa. Preparava-se exaustivamente – estudava a Bíblia, os documentos da Igreja, a Liturgia, enfim, os temas catequéticos que deveria tratar. Levava tudo escrito e mesmo que lá, com a prática que foi adquirindo, falasse "de improviso", em hipótese alguma deixava de levar o texto.
Breve disponibilizarei estas preciosas reflexões, fruto dos estudos e das anotações que meu pai fazia nos retiros que participava, bem como de sua assídua leitura dos documentos da Igreja, que, não tão acessíveis ao grande público como hoje, lhes eram ofertados pelo próprio Dom Luciano.
Homenageio Dom Luciano Duarte, trazendo para os leitores o artigo que aqui meu pai publicou, na edição de 03/02/2015, intitulado "Eu sei em quem acreditei (2.ª Tim 1,12)":
– "Aprendi a amar a Ação Católica, ainda no Seminário. Nestes anos indeléveis, passados à sombra do santuário, enquanto os estudos e a formação nos tomam todos os momentos, praz ao espírito abrasado do adolescente estender de quando em vez os olhos ardentes sobre o mundo, sentir o farfalhar da messe redoirada, perscrutar os problemas angustiantes, imaginar remédios e curas. Restaurar. Reacender as chamas mortas. Selar de novo os antigos e sacrossantos compromissos perjurados. Fazer os Cristãos viverem de tal modo que a sua vida, para os outros homens, seja uma coisa inexplicável sem Deus. Apontar aos homens a velha e amiga estrada abandonada, a que conduz à Casa Paterna. Ensinar que não se é cristão por se haver perdido, mas por se haver achado. Reafirmar a cada passo, a cada solicitação do mal, a cada tropeço nas escarpas da vida, reafirmar com São Paulo esta coisa formidável: "Eu sei em quem acreditei" (2.ª Tim 1,12). É isto a Ação Católica… Somente isto. Tudo isto (Seminarista Luciano José Cabral Duarte)" – Memórias de uma Fraternidade Cristã, pag. 43/44, Edise, 2014.
Essas palavras tão fortes, tão sinceras, fruto da alma de um jovem Seminarista, são testemunho da dedicação, da certeza, da fé que o envolvia e o manteve inabalável e que, agora, aos 90 anos de vida [o artigo foi escrito em 2015], começa a colher os frutos de seu exemplo, em livros, encontros, simpósios, graças a Deus, ainda entre filhos espirituais, colegas, amigos, admiradores, parentes, intelectuais, clérigos e também cristãos simples que tiveram a chance de, mesmo com poucos méritos, ouvi-lo, admirá-lo, assimilar um pouco da mensagem do cristianismo, expressada com a força da fé, como a dizer sempre "Eu sei em quem acreditei" (2.ª Tim 1, 12).
Salve, Dom Luciano José Cabral Duarte, Arcebispo Emérito da Arquidiocese de Aracaju, cujos ensinamentos catequéticos passaram a orientar-me desde 1974, quando participei pela primeira vez de um Cursilho de Cristandade, o 4.º por aqui realizado, 1.º totalmente a cargo da equipe dirigente local (os três primeiros, organizados e dirigidos por equipes da Arquidiocese de Salvador). E, a partir desse primeiro momento, passei a interessar-me mais por um cristianismo católico então passado de pais para filho, sem o estudo, a meditação, a oração, tantas vezes recomendadas; esses itens passaram a integrar a minha vida religiosa, a me fazer ou me transformar em um "fiel cristão leigo", e sempre ligado à igreja local, à qual prestei alguns serviços, inclusive oficialmente nomeado por Dom Luciano Duarte.
O trabalho de Dom Luciano, não somente para a igreja local, o estado e o país, foi também muito importante para a igreja no mundo, reconhecido, inclusive, pelos dicastérios romanos e que o levaram à vice-presidência do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), e, foi desenvolvendo essa missão que ele recebeu, acolheu e saudou oficialmente o Papa João Paulo II (hoje santo da Igreja) quando de sua primeira visita oficial ao Brasil.
Inesquecível o trabalho diuturno que desenvolveu e encarou, com fé, no final dos anos setenta e início dos anos oitenta do século passado, em relação à crise de vocações sacerdotais, no Brasil e no mundo, empenhando-se em "colocar a Arquidiocese em estado de sensibilidade vocacional", rezando e fazendo rezar oração específica sobre o problema e fazendo palestras e homilias sob o tema "O sacerdote no mundo dessacralizado de hoje" (época já citada), trabalho de profundidade que o levou a participar como conferencista em Convenção do Serra Internacional, nos Estados Unidos da América, representando a delegação do Serra do Brasil em tão importante evento.
E, graças a Deus, viu e continua vendo os efeitos de tão relevante trabalho, a "Resposta de Deus à comunidade orante", com sacerdotes católicos disponíveis para assistir ao grande número de paróquias criadas alegremente pelo seu sucessor.
Voltando ao Movimento de Cursilhos de Cristandade, por ele implementado na Arquidiocese de Aracaju, instrumento de transformação operada em homens e mulheres, mais ou menos católicos (as), reavivou a fé e fortaleceu a consciência cristã em centenas de participantes, ainda hoje atuantes como missionários (as), especialmente no âmbito familiar e da sociedade, chamados a evangelizar em nome da Igreja de Jesus Cristo, de Maria Santíssima e do Papa.
Registre-se que esse movimento sofreu restrições, inclusive por comissão a serviço do golpe militar de 64, então ditando no país. A "autoridade" que procurou o bispo representando a força, não encontrou gesto de fraqueza e medo de ação contra o movimento. Dom Luciano respondeu que não alteraria nada do que era apresentado nas reflexões que ele conhecia, como conhecia também cada palestrante.
"O movimento vai prosseguir como foi criado por Dom Hervaz (bispo espanhol de Palmas de Majorca) e, se vocês quiserem comprovar que prega-se no Cursilho apenas verdades, inscrevam candidatos ligados a vocês e mande-os, sem nos dar ciência de quem são eles, participar de um grupo. Eles ou elas ficarão de 5.ª feira à noite até o domingo à tarde internados, em curso intensivo, e depois, se vocês quiserem, digam o que acharam".
E eles mandaram. O homem foi e saiu do Cursilho encantado com tudo o que ouviu em palestras (rollos) e testemunhos. E mais, passou a vivenciar sua fé, integrando-se a grupos de missão. Experiência e conversão.
Depois, internamente, mudanças no Diretório Nacional do Movimento levou à decisão modificar os esquemas, a ordem das coisas, outras maneiras de apresentar as palestras. E recomendaram ao presidente local proceder as mudanças. Este, sabiamente, não quis mudar nada e disse para o nacional que só atenderia se o movimento se entendesse com o Arcebispo e ele autorizasse.
Veio uma representante do nacional conversar com Dom Luciano, ele não gostou e disse a ela que aqui na Arquidiocese continuaria fiel ao programa de Dom Hervaz, não modificaria nada. E ela: "Assim, Dom Luciano, o nacional descredenciará o movimento daqui da Arquidiocese". E Dom Luciano: "Não percamos tempo. A partir de agora já nos consideramos descredenciados. E continuaremos fiéis ao esquema de Dom Hervaz".
A representante sentiu a firmeza do Arcebispo, pediu desculpas, reconheceu que não foi feliz no que disse e accedeu em que tudo permanecesse como estava.
A firmeza na fé de Dom Luciano permaneceu igual a seu empenho em tudo que empreendeu. O mesmo entusiasmo pela Ação Católica, permaneceu em tudo de católico que realizou.
* Raymundo Mello é Memorialistaraymundopmello@yahoo.com.br