Segunda, 27 De Janeiro De 2025
       
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A intuição messiânica na cultura brasileira: Antônio Conselheiro e o atual presidente do Brasil


Publicado em 18 de junho de 2019
Por Jornal Do Dia


 

* Ivan Fontes Barbosa
O sociólogo e filósofo alemão Karl Marx, ao dar início à análise do 18 de Brumário na França, traduziu alguns aspectos de sua reflexão da seguinte forma: Hegel observa … que todos os fatos e personagens […] na história do mundo ocorrem, por assim, dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar – a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. 
O povo brasileiro, enquanto realidade estatística apresenta uma sensibilidade esculpida profundamente pelas direções religiosas, patriarcais e arcaicas que marcaram a construção desta sociedade após a invasão deste continente e a escravização dos povos originários e diaspóricos. Essa maneira de perceber e explicar o mundo pode ser traduzida na forma fatalista e mística da percepção da historicidade da dinâmica da cultura e das instituições sociais. Ela migra para o plano místico o entendimento da origem de tudo e em muitas das vezes está no alicerce da emergência dessas formas de controle político cognominadas na sociologia de dominação carismática. Elas são assentadas, como diria o criador da tipologia, o sociólogo alemão Max Weber, na veneração da santidade, do poder heroico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por estas reveladas ou criadas. 
Foi essa sensibilidade que orquestrou a emergência da Tróia de Taipa, a audaciosa e intrigante experiência "comunista" em terras brasileiras em fins dos novecentos. Ela engendrou a engrenagem que vinculou e mobilizou milhares de sertanejos em torno de ideais de igualdade e fraternidade e fez brotar, de uma intuição religiosa que pregava a instauração dos mil anos de felicidade na terra, o arraial de Canudos. De um desconhecido comerciante em Quixeramobim a líder de milhares de trabalhadores rurais, Antônio Vicente se transforma em Antônio Conselheiro.
A grandeza épica e a dimensão popular do Arraial de Canudos, e da façanha de seu principal artífice, foram explicadas e traduzidas por inúmeros autores. Dentre estas investidas, a mais destacada é a que culminou no livro que nasceu da cobertura da expedição militar enviada pelo governo federal para aniquilar Canudos e operada pelo então jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) ao longo do ano de 1897. Embora prenhe de uma orientação racista, que acreditava na inferioridade do mestiço e do negro brasileiro, ele não descurou da sensibilidade histórica e sociológica ao registrar em suas páginas a tragédia de Canudos. Essa é percebida como uma reação automática à desigualdade que marcava o sertão nordestino. O elemento místico fardava a reação e a luta desses sertanejos à exploração sofrida. Como bem observou Euclides, em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. 
Será que estamos condenados à civilização como asseverava ele em Os Sertões?  Afirmava que os historiadores só podem avaliar a atitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Qual a psicologia de parte da sociedade brasileira que endossou esse novo personagem da política brasileira? Como ela indica a recapitulação da história brasileira? Será que ela concorre para que realizemos a sina de civilizarmos? 
Para um povo, como bem observou nosso autor, em que a terra é um exílio insuportável e o morto um bem-aventurado sempre, não é de se estranhar a aceitação da exploração exaustiva do trabalho, do salário mínimo, da reforma da previdência, das mudanças da CLT e todos os sacrifícios e humilhações que os artífices da farsa propagam como razoáveis e necessários ao desenvolvimento da sociedade brasileira. 
Valem-se da exploração dessa psicologia enraizada em formas de sentir, pensar e agir assentadas em categorias dogmáticas e pouco elaboradas de pensamento emanadas, em boa parte, dos discursos e interesses das elites religiosas. São pessoas de "boa fé", trabalhadores e trabalhadoras que não admitem que pessoas que não trabalham se beneficiem da riqueza produzida pelos outros enquanto eles que trabalham exaustivamente não conseguem realizar seus projetos elementares. São frutos de uma sociedade que garantiu uma concentração exorbitante de capital cultural e econômico para uma minoria e a condição de força de trabalho desprovida de escolaridade para a grande maioria. Organização social que ao longo dos anos foi distribuindo religião e um pouco de instrução a esse contingente. A primeira para alimentar a esperança e suportar as agruras da escassez e a segunda para garantir o consentimento a essa ordem iníqua.
A história se repete pouco mais de um século depois Com outras proporções, a estrutura desigual mantém-se incólume. Uma imensa população carente, com necessidades objetivas de inclusão, que não suportando mais o peso de tanta desigualdade, opta por uma solução simples, arcaica, patriarcal e fatalista. Desconhecedora dos arranjos que vão paulatinamente entregando nosso país ao capital estrangeiro e forjando o fosso entre os ricos e os pobres, acreditou em demagogos que usaram o argumento de que Deus estando acima de tudo, desfaria tanta iniquidade. Com uma atualidade impressionante, as palavras de Euclides da Cunha traduzem o orbe contemporâneo. Consoante sua arguta observação, temos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido […] é uma pena que ainda não existe um Maudsley (psiquiatra Inglês) para as loucuras e os crimes das nacionalidades.  Assim como Conselheiro, o atual presidente do país se explica pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento. O primeiro, nossa maior tragédia. O segundo, …
* Ivan Fontes Barbosa é Doutor em Sociologia pela UFPE e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFS.

* Ivan Fontes Barbosa

O sociólogo e filósofo alemão Karl Marx, ao dar início à análise do 18 de Brumário na França, traduziu alguns aspectos de sua reflexão da seguinte forma: Hegel observa … que todos os fatos e personagens […] na história do mundo ocorrem, por assim, dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar – a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. 
O povo brasileiro, enquanto realidade estatística apresenta uma sensibilidade esculpida profundamente pelas direções religiosas, patriarcais e arcaicas que marcaram a construção desta sociedade após a invasão deste continente e a escravização dos povos originários e diaspóricos. Essa maneira de perceber e explicar o mundo pode ser traduzida na forma fatalista e mística da percepção da historicidade da dinâmica da cultura e das instituições sociais. Ela migra para o plano místico o entendimento da origem de tudo e em muitas das vezes está no alicerce da emergência dessas formas de controle político cognominadas na sociologia de dominação carismática. Elas são assentadas, como diria o criador da tipologia, o sociólogo alemão Max Weber, na veneração da santidade, do poder heroico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por estas reveladas ou criadas. 
Foi essa sensibilidade que orquestrou a emergência da Tróia de Taipa, a audaciosa e intrigante experiência "comunista" em terras brasileiras em fins dos novecentos. Ela engendrou a engrenagem que vinculou e mobilizou milhares de sertanejos em torno de ideais de igualdade e fraternidade e fez brotar, de uma intuição religiosa que pregava a instauração dos mil anos de felicidade na terra, o arraial de Canudos. De um desconhecido comerciante em Quixeramobim a líder de milhares de trabalhadores rurais, Antônio Vicente se transforma em Antônio Conselheiro.
A grandeza épica e a dimensão popular do Arraial de Canudos, e da façanha de seu principal artífice, foram explicadas e traduzidas por inúmeros autores. Dentre estas investidas, a mais destacada é a que culminou no livro que nasceu da cobertura da expedição militar enviada pelo governo federal para aniquilar Canudos e operada pelo então jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) ao longo do ano de 1897. Embora prenhe de uma orientação racista, que acreditava na inferioridade do mestiço e do negro brasileiro, ele não descurou da sensibilidade histórica e sociológica ao registrar em suas páginas a tragédia de Canudos. Essa é percebida como uma reação automática à desigualdade que marcava o sertão nordestino. O elemento místico fardava a reação e a luta desses sertanejos à exploração sofrida. Como bem observou Euclides, em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. 
Será que estamos condenados à civilização como asseverava ele em Os Sertões?  Afirmava que os historiadores só podem avaliar a atitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Qual a psicologia de parte da sociedade brasileira que endossou esse novo personagem da política brasileira? Como ela indica a recapitulação da história brasileira? Será que ela concorre para que realizemos a sina de civilizarmos? 
Para um povo, como bem observou nosso autor, em que a terra é um exílio insuportável e o morto um bem-aventurado sempre, não é de se estranhar a aceitação da exploração exaustiva do trabalho, do salário mínimo, da reforma da previdência, das mudanças da CLT e todos os sacrifícios e humilhações que os artífices da farsa propagam como razoáveis e necessários ao desenvolvimento da sociedade brasileira. 
Valem-se da exploração dessa psicologia enraizada em formas de sentir, pensar e agir assentadas em categorias dogmáticas e pouco elaboradas de pensamento emanadas, em boa parte, dos discursos e interesses das elites religiosas. São pessoas de "boa fé", trabalhadores e trabalhadoras que não admitem que pessoas que não trabalham se beneficiem da riqueza produzida pelos outros enquanto eles que trabalham exaustivamente não conseguem realizar seus projetos elementares. São frutos de uma sociedade que garantiu uma concentração exorbitante de capital cultural e econômico para uma minoria e a condição de força de trabalho desprovida de escolaridade para a grande maioria. Organização social que ao longo dos anos foi distribuindo religião e um pouco de instrução a esse contingente. A primeira para alimentar a esperança e suportar as agruras da escassez e a segunda para garantir o consentimento a essa ordem iníqua.
A história se repete pouco mais de um século depois Com outras proporções, a estrutura desigual mantém-se incólume. Uma imensa população carente, com necessidades objetivas de inclusão, que não suportando mais o peso de tanta desigualdade, opta por uma solução simples, arcaica, patriarcal e fatalista. Desconhecedora dos arranjos que vão paulatinamente entregando nosso país ao capital estrangeiro e forjando o fosso entre os ricos e os pobres, acreditou em demagogos que usaram o argumento de que Deus estando acima de tudo, desfaria tanta iniquidade. Com uma atualidade impressionante, as palavras de Euclides da Cunha traduzem o orbe contemporâneo. Consoante sua arguta observação, temos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido […] é uma pena que ainda não existe um Maudsley (psiquiatra Inglês) para as loucuras e os crimes das nacionalidades.  Assim como Conselheiro, o atual presidente do país se explica pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento. O primeiro, nossa maior tragédia. O segundo, …

* Ivan Fontes Barbosa é Doutor em Sociologia pela UFPE e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFS.

 

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