A LENDA DO LAGO DE SOBRADINHO (BA)
Publicado em 30 de novembro de 2023
Por Jornal Do Dia Se
* Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
Em viagem aos sertões do São Francisco, tive a oportunidade de conhecer a obra da artista multimídia – escritora, atriz e produtora cultural – Maria Rita da Costa Souza, A Lenda do Lago (2022), publicada na cidade de Sobradinho, no estado da Bahia, sob os auspícios da Lei Aldir Blanc.
Nesse livro voltado para o público infantil, com ilustrações de Marx Ilianov, observamos a reelaboração das lendas do rio São Francisco para a contemporaneidade, que, desde o início do século XX, têm servido de ponte para a construção de uma linguagem literária e de uma temática nacional na literatura para crianças. A preocupação educativa está articulada com a construção de uma identidade, que desvende a presença originária da aldeia Tamoquim, transformada em fazenda Tatauíno contexto colonial, local onde, posteriormente, se edificou a Barragem e a cidade de Sobradinho (BA) (KESTERING e KESTERING, 2014).
Dedicada aos descendentes dos índios Tamoquim, a trama se estrutura a partir da memória indígena, articulando texto e imagem, cujo pano de fundo é o sertão paraíso, abrasileiramento do locusamoenusna caracterização de árvores, fonte ou ribeirão, pássaros, flores e o vento. A associação da natureza como o lócus da beleza, da pureza e do equilíbrio perdido (CRISTÓVÃO, 1993/1994: p. 46), se estende à construção da personagem Juacema, nome dado à flor do juazeiro, que simboliza “a índia do Salto de Sobradinho”, cuja pele reluzia como jaboticaba, os olhos eram como diamantes em noite de lua cheia e o “sorriso era capaz de amansar o mais feroz dos animais” (RITA, 2022: p. 7).
A narrativa gira em torno dessa personagem, que, ao preferir a vida livre da mata, prescinde das tentativas de casamento a ela ofertados pelos pretendentes Tamoquim. Sua beleza era tanta, que o Sol “teve o coração flechado”, que “pulsava tão forte que Juacema escutava e direcionava o olhar para o alto” (RITA, 2022: p. 17 e 19).
Apaixonado o Sol deixou de luzir os dias e fez-se “noites sem dias”. “A lua, preocupada, até chorou”. O reencontro de Juacema e o Sol possibilitou viverem “um grande amor”, resultando em um filho chamado Jurupari (RITA, 2022: p. 24, 23 e 30).
O curumim travesso e arteiro “tinha o poder de se transformar em um grande morcego”, sobrevoando “a tribo e o Salto de Sobradinho, tentando afastar os homens que se aproximavam com a intensão [sic] de modificar a paisagem do lugar”. Entretanto, foi vencido com a destruição do Salto de Sobradinho, pelo represamento do rio São Francisco. Na primavera, provoca fortes ventanias, que agitam o lago, lembrando o aniversário de sua mãe (RITA, 2022: p. 33 e 35).
Alberto da Costa e Silva relatou que “Jurupari é um ente mítico dos Índios Tupi. Habitava as aldeias abandonadas e aterrorizava os homens (…). O seu nome, tomado pelos missionários cristãos para designar o demônio, difundiu-se por todo o Brasil” (s/d.: p. 63). Em Geografia dos Mitos Brasileiros, Câmara Cascudo inventaria sua presença na cultura indígena e como os europeus o interpretaram, tentando afastá-lo da memória e do imaginário dos povos originários. Segundo o folclorista, “há dois nomes para Jurupari: Diabo e Pesadelo”. Mesmo com toda a repressão do colonialismo, registrada nos escritos dos cronistas, manteve-se “na primeira fila dos temas ameríndios”, presente “no ritmo de cada maracá estrugindo nos silêncios rituais da ocara” (CASCUDO, 1983: p. 51 e 52).
Assim, nos últimos anos, a reescrita do mundo, a partir da perspectiva indígena, tem contribuído com narrativas para repensarmos a utilização de lendas dos povos originários como mote para a produção literária para crianças ou não, especialmente por que elas se constituem como parte de “uma ancestralidade que se recusa a desaparecer, que pisa forte na terra por onde caminha, se faz peixe, pedra, montanha, marcando o caminho nas palavras que não cessam de se dizer” (SAAVENDRA, 2023: p. 40).
Para Carola Saavendra, talvez o melhor caminho seja que “a cultura indígena deixe de ser folclore, lenda morta, mito exótico, e se torne em todos os sentidos parte da realidade que constitui e pensa o país”. Penso que Maria Rita compartilha dessa leitura e o seu livro pode abrir a possibilidade de “que é possível reescrever o passado e reorganizar o futuro, permitindo o surgimento de outros futuros, antes impossíveis” (SAAVENDRA, 2023: p. 40).
As escritoras dos sertões brasileiros entendem bem o que os encantados querem nos dizer, pois, “mesmo com todas as mudanças do mundo moderno”, as narrativas indígenas permanecem importantes, para nós, pela sua capacidade de imaginação e pela riqueza e complexidade de seu pensamento, pois são exemplos de uma resistência cultural mais do que necessária para repensarmos o Brasil hoje (CESARINO, 2015: p. 12).
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1983.
CESARINO, Pedro. Histórias Indígenas dos Tempos Antigos. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
COSTA E SILVA, Alberto (org.). Lendas do Índio Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
CRISTÓVÃO, Fernando. A transfiguração da realidade sertaneja e a sua passagem a mito (A Divina Comédia do Sertão). Revista USP (Dossiê Canudos), n. 20, dezembro/janeiro/fevereiro 1993-1994.
KESTERING, Celino e KESTERING, Ducilene Soares Silva. Educar na Diversidade para Construir a Identidade de Sobradinho (BA). Revista Memorare, Tubarão. v. 2, n. 1, p. 46-71 set./dez, 2014.
SOUZA, Maria Rita da Costa. A lenda do lago. Sobradinho (BA): Edição da Autora, 2022 (Ilustração de Marx Ulianov).
SAAVEDRA, Carola. Reescrita do mundo. In: Quatro Cinco Um: A revista dos livros. Ano 7, n. 75, novembro de 2023.
* Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá, Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe