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A morte violenta causada pela ditadura


Publicado em 13 de dezembro de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Urariano Mota

 

Uma notícia desta semana informa que os cartórios devem emitir nova certidão de óbito de vítimas da ditadura militar. O Conselho Nacional de Justiça aprovou na terça-feira (10) uma resolução que determina que os cartórios passam a ser obrigados a reconhecer as mortes ocorridas durante a ditadura militar.
Eles devem retificar as certidões de óbito com a grave informação de que a causa real da morte não foi natural, mas causada pelo Estado brasileiro. O documento deve trazer a seguinte informação: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
A decisão do CNJ avaliou uma proposta do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O presidente do conselho, ministro Luís Roberto Barroso, classificou a medida como um acerto de contas legítimo com o passado. Trata-se de uma decisão histórica, sem dúvida.
Entre os muitos casos de óbitos, pior, entre todos os casos de óbito da ditadura, cínicos, criminosos, lembro o de Soledad Barrett, que ao lado de cinco militantes socialistas foi assassinada em janeiro de 1973 no Recife. Em 11/02/2016. o jornal O Globo noticiava:
“O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, determinou a um cartório da capital paulista que proceda a inscrição da ‘causa mortis’ de Soledad Barrett Viedma, em sua certidão de óbito, como ‘”desaparecimento político’ “.
Mas nesta semana houve um sério avanço. Não se trata mais de morte de desaparecido político. Trata-se de crime violento cometido pela ditadura.
É uma história bárbara, feita por bárbaros, assassinos fascistas do regime implantado em 1964. O feto de Soedad foi arrancado do seu cadáver!
Relatou a fundamental advogada Mércia Albuquerqu:
“Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério…. em um barril estava Soledad Barrettt Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto.”
Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, ela não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao horrível e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco, falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”.
No depoimento da advogada não havia uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa que fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-os pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres -, despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.
Aqui chegamos a um estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade. Vamos ao momento do depoimento imortal da advogada Mércia Albuquerque:
“O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”.
Agora, chegou a vez de corrigir na certidão de óbito o que estava antes na história. Atualização cartorial do horror.

 

* Urariano Mota, autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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