A luta por um lar.
A única verdade da guerra
Publicado em 25 de agosto de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos- riansantos@jornaldodiase.com.br
A queda de um avião na região de Tver, na Rússia, matou ontem Yevgeny Prigozhin, líder do Grupo Wagner, um exército mercenário que participou ativamente da invasão russa na Ucrânia, antes de ensaiar, em junho, uma rebelião contra o presidente Vladimir Putin. O suposto acidente é compatível, portanto, com fundadas suspeitas de assassinato.
Ser rival de Putin faz mal à saúde. Prigozhin foi a 12ª pessoa de destaque na Rússia a morrer em circunstâncias suspeitas nos últimos anos após entrar em choque com o presidente. Mas ainda há quem divida as responsabilidades sobre a guerra na Ucrânia igualmente entre os líderes dos países em conflito, como fez o presidente Lula, há poucos meses, numa entrevista ao New York Times.
Sobre o episódio, mais interessante do que a breve declaração de Lula, é o apelo da população local. E um longa metragem realizado em solo ucraniano se aproveitou da atmosfera de tensão na fronteira entre os dois países para advertir sobre as consequências previsíveis da escalada bélica.
Poucos filmes são atuais como ‘Klondike: A guerra na Ucrânia’. Quase profético. O drama de Maryna ErGorbach tem como cenário a fronteira com a Rússia. E aborda os conflitos na região sob a perspectiva da população do país invadido.
Embora a trama seja situada em 2014, os eventos ainda reverberam, como prova a guerra em andamento. No filme, Irka (OksanaCherkashyna) e Tolik (Sergey Shadrin) vivem em Donetsk, nas proximidades da fronteira entre o país e a Rússia, um território em disputa no começo da Guerra em Donbas. O casal aguarda o nascimento do primeiro filho, quando um voo civil é abatido por mísseis e cai na região, matando quase 300 pessoas, o que só fez aumentar a tensão, deixando um rastro de tristeza e luto.
Tolik é pressionado por seus amigos separatistas pró-Rússia a se juntar ao embate, enquanto o irmão de Irka suspeita que o casal esteja traindo o próprio país. Embora a angústia cresça, a jovem se nega a deixar o seu lar, mesmo quando o vilarejo onde vivem é capturado pelas forças armadas. Tentando reaproximar seu marido e seu irmão, a protagonista pede que eles unam forças para reerguer a casa destruída num bombardeio.
Nascida na Ucrânia e radicada em Istambul, ErGorbach disse, em entrevista ao jornal alemão Zeit, que se lembra muito bem do fatídico 17 de julho de 2014, dia do ataque ao avião, pois é seu aniversário.
“Eu fiquei o tempo todo procurando anúncios oficiais sobre a queda da nave, ninguém foi responsabilizado pelo lançamento dos mísseis. Passaram-se anos, e, praticamente, nada aconteceu. Foi quando percebi: se algo dessa magnitude não é punido, quem se interessará pelo sofrimento do povo de Donbas?”
Ela conta que, em 2014, ninguém esperava uma guerra e, hoje, as pessoas recebem avisos para não sair de casa, ficar com as janelas fechadas. “A guerra hoje é chamada por seu nome. A imprensa internacional não duvida mais disso. Em meados de fevereiro, era diferente. Falava-se num ‘conflito’ entre a Rússia e a Ucrânia”.
A diretora, que também assina o roteiro e a montagem, destaca o papel fundamental das mulheres na resistência ao conflito, e, por isso, o longa é dedicado a elas.
“O instinto de sobrevivência de Irka é maior na guerra. E essa mensagem me fez dedicar o filme a elas. Num sentido mais amplo, também quer dizer: Não há soldado ou matador sem mãe. Há sempre uma mulher por trás deles. Não creio que nenhum homem lutaria por seus valores, por si mesmo. Os homens que lutam na Ucrânia buscam suas forças no fato de terem mães, esposas, filhas.”
Premiado em Sundance e Berlim, ‘Klondike: A guerra na Ucrânia’ também foi muito bem recebido pela crítica. A Variety destaca a direção firme de ErGorbach. “Conflitos, pessoas e políticos são retratados por uma câmera serena, num filme que traz uma visão da guerra em andamento”.