ABELARDO ROMERO, OS SONS E UM LUGAR DE MEMÓRIA
Publicado em 13 de dezembro de 2020
Por Jornal Do Dia
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos
Para além das imagens, os sons se revestem de sentido e também são detonadores de lembranças. Eles transcrevem e representam situações que ficaram marcadas seja nas trajetórias de vida das pessoas, seja no imaginário coletivo. Nesse sentido, Maurice Halbwachs (1877-1945) foi muito feliz quando, em relação aos sons, disse que eles: "Resultam de convenções, e não têm sentido a não ser em relação ao grupo que os inventou ou adotou" (1925, p. 166).
Em 1955, o poeta sergipano Abelardo Romero escreveu um poema em homenagem a sua terra natal: Lagarto. Nascido na Capital do Interior de Sergipe no dia 13 de junho de 1907, notabilizou-se na imprensa e na literatura brasileira na cidade do Rio de Janeiro, onde fez carreira e sucesso, atuando no Diários Associados, de Assis Chateaubriand, tendo publicado diversos livros, tais como: Vozes da América (1941), A musa armada (1953), O passado adiante (1969), entre outros, como a obra póstuma Limites Democráticos do Brasil (2009).
Sinos de Lagarto, à luz das assertivas de Maurice Halbwachs, certamente vai ao encontro de muitos elementos identitários, sobretudo quando a interface em questão é o som e o lugar de memória. Composto de quatorze estrofes, o poema é reporta o autor e quem o ler à uma Lagarto de velhos tempos, em que o badalar dos sinos da Matriz de Nossa Senhora da Piedade determina o ritmo do lugar e se apresenta como um grande arauto de notícias as mais diversas: do nascer ao morrer, do celebrar ao prantear.
Finos e longos, com golpes de bronze, o pequeno e o grande, dobram a finados e o fazem indistintamente por qualquer um: do nobre ao bêbado. Trata-se de uma convenção social democrática, capaz de unir a todos numa mesma toada. Anuncia festa de santo, desgraças como a cólera, a guerra, a fome, mas também as boas novas do viver de um povo.
Quando eu era menino, alcancei uma Lagarto pacata e tranquila, onde cochilava-se à tarde sem fechar portas ou janelas, sem grades ou cerca elétricas. Do meu quarto, na esquina da Travessa Municipal com a Rua Senhor do Bomfim, ouvia-se o código sagrado que vinha das torres da Piedade. Se finos e longos, como nos dias o poeta, pode ter certeza, morria-se alguém. Os sinos que chamam para a Missa e nos convidam para a Ave Maria. Espetáculo descrito por Romero ao se referir às andorinhas que floresciam "sob o vaso de bronze". E aquele cair de tarde, até hoje melancólico e lindo, mesmo em tempos de tantos sons, como de buzinas de carro, carros de propaganda, motos velozes e furiosas.
À noite, da Praça da Piedade, hoje iluminada pelas luzes do Natal que se avizinha, do presépio sob o pé do palanque, crianças a correr e adultos a experimentar novos selfies, ainda é possível, como nos diz o poeta com maestria, ver: "Do sino grande, tombam morcegos, tontos de sono, na escuridão…". Lagarto de lindas noites estreladas, Abelardo está vivo em sua beleza histórica e na sua singeleza de velha vila sertaneja sergipana.
Abelardo Romero Dantas foi integrante da Academia Sergipana de Letras, ocupando a cadeira de número 16. Foi um dos grandes defensores e entusiastas da entrada de mulheres para o Sodalício, abrindo espaço para Ofenísia Freire. A cadeira 16, atualmente, é ocupada por uma exímia escritora sergipana: Ana Maria Medina Fonseca. Ele morreu no dia 17 de março de 1979, no atual Bairro Cidade Nova, em Lagarto e seu corpo está sepultado no Cemitério Senhor do Bomfim. Ao que consta, os sinos da Matriz de Nossa Senhora da Piedade também tocaram por ele.