Quinta, 26 De Dezembro De 2024
       
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Amar em silêncio


Publicado em 30 de setembro de 2013
Por Jornal Do Dia


* Paulo Fernando Teles Morais

No cemitério de Maruim há duas sepulturas iguais e incomuns abandonadas há muitos anos. Construídas com sólido e rico material, que sugere mármore de Carrara, suas pedras simetricamente justapostas brilham como se tivessem acabado de ser polidas.  Lá dentro, amalgamados, ossos e terra petrificados, sombras do vazio. Em suas lápides constam unicamente os anos de nascimento e morte dos que ali foram deixados e uma inscrição. No primeiro, que fica ao lado direito de quem entra no cemitério, próximo ao muro retangular que o isola, as datas: 1890 – 1932; logo abaixo, a frase: Descanse em paz quem muito amou em silêncio.
Tomando em linha reta a direção oposta, há o outro túmulo, com as mesmas informações, exceto a diferença de datas: l870 – 1931; sob elas o instigante epitáfio.
Durante algum tempo, tentei descobrir os nomes dos mortos, em vão. Das famílias, tampouco. Uma das pessoas consultadas, encalhada habitante da cidade, disse que quando ela nasceu os túmulos já estavam ali, e recorda o aparecimento de forasteiros no Dia de Finados, para rezarem sobre eles e colocar flores em suas cantoneiras. A cada ano tais visitas foram rareando e desapareceram. A velha maruinense ouvira do pároco cônego Antídio que no final do século XIX e na primeira década do século XX algumas famílias do Sul fincaram os interesses comerciais na cidade-trapiche de Maruim, na época ainda exportadora de açúcar para a Europa, e progrediram muito. Alguns dos seus integrantes foram nela sepultados, como se fora grata distinção à terra que os recebeu de forma hospitaleira e pródiga.  Quanto à deliberada omissão da identidade dos defuntos nos dois jazigos, haja vista o restante estar nitidamente legível, não houve reza que desvelasse os conhecimentos do reverendo sobre o motivo da singular ausência. Minhas pesquisas deram em resultados pífios, inconsistentes e mal explicados, e terminei cansando. Mas todas as vezes que ia àquele cemitério era atraído pelos dois segredos marmóreos, e por eles levado ao desejo de desvendá-los.
Faz algumas semanas, sem que houvesse qualquer intenção, ao folhear por curiosidade velhos jornais sergipanos encontrei um, edição de 12 de julho de 1943, com reclame de uma casa do Rio de Janeiro que construía jazigos numa Rua de Ramos, ilustrado com a foto dos túmulos de Maruim.  Estupefato, escrevi o endereço, não obstante a pouca esperança de que a firma ainda existisse.
Viajei ao Rio. As anotações me levaram a um prédio de arquitetura bizarra, à frente um portão de ferro arqueado, com arabescos enferrujados, indícios de decadência e corrosão pelo tempo; depois dele atravessa-se um jardim também malcuidado, infestado de ervas daninhas até a porta de entrada.  Fui recebido por quem me pareceu dono ou sócio da Jazigo Perpétuo – À Prova de Ressurreições. O subtítulo me deu vontade de rir, sem dúvida exagerada referência ao material supostamente indestrutível com que trabalhavam. Estava diante de um homem de feitio remotíssimo, mumificado num terno preto completo, inclusive com colete, o rosto plúmbeo.  Ao entrar, não vi mais ninguém. Era possível que a fábrica ficasse nos fundos, e estávamos num espaço que podia ser descrito como parlatório: uma pequena sala, com mesa no centro, sofá e cadeiras de palhinha.  A sisudez do homem me deixou desconfortável, apressei a conversa contando-lhe o motivo de minha visita. Fleumático, pediu licença, retirou-se. Alguns minutos depois retornou com um intemporal e maçudo catálogo encadernado a mão. "Vossa Senhoria fique à vontade. O que procura sem dúvida encontrará", e retirou-se, teso.  Algumas páginas depois, não me contive: "Ei-los aqui! Senhor, encontrei!".  Sob a foto dos dois túmulos, havia um texto. O negociante chegou tão rápido que parecia não ter saído dali. "Deus seja louvado! Vossa Senhoria, por favor, me acompanhe".  Levou-me até outra sala onde havia uma única poltrona.  "Vossa Senhoria, pode sentar-se e dispor do tempo que achar necessário. Inspire e respire pois lerá a mais tocante história de amor, desde que Julieta Capuleto, debruçada sobre o balcão da sua casa, aguardava a chegada de Romeu Montecchio".  O estilo pomposo desse homem chegava ao exagero de citar os sobrenomes dos amantes trágicos mais famosos do mundo.
Fiquei sozinho. O silêncio era total, o ar pesava encurtando meu fôlego. Comecei a ler, inquieto.
"Em 9 de outubro de 1941, recebemos da Excelentíssima Senhora Dona Judith Sachs a encomenda de dois jazigos, nos quais constariam somente datas e um epitáfio, e seriam transportados e edificados no cemitério da cidade de Maruim, no Estado de Sergipe. Exigiu que o material fosse o melhor do nosso estoque, e insistiu para reembolsar-nos imediatamente. Não sendo do interesse da Casa o conhecimento de pormenores da vida dos nossos clientes, limitando-nos ao que diz respeito às transações comerciais, pela primeira vez, em face do extraordinário pedido, abrimos uma exceção: por tratar-se de respeitabilíssima madame, membro e digna representante de família de moral ilibada e comportamento irrepreensível, bem como dos familiares do Excelentíssimo Senhor Giacomo Marsiglia, todos eles nossos honrados amigos e clientes desde que nos instalamos, acatamos, dada a insistência da referida Senhora, um opúsculo dividido em duas partes: a primeira relata um episódio segredo de família, do qual tomamos conhecimento através desta peça, e conosco assim permanecerá, a seu pedido, até a morte dos que estiveram nele envolvidos e seus descendentes diretos; na segunda, resultantes da primeira, estão as instruções que devemos cumprir, com o rigor e discrição habituais em nossas atitudes. Pela firma Jazigo Perpétuo – À Prova de Ressurreições, Anízio Josefo Medrado, Presidente, e Eunápio Josefo Medrado, Vice-Presidente."

O DOCUMENTO            
"Sou filha de Otto e Marlene Sachs, descendentes de alemães. No início do século XX morávamos na cidade de Maruim, no Estado de Sergipe, onde nasci. Meu pai era exportador de açúcar. Alguns anos depois, quando já éramos dois irmãos, chegaram ao município o casal Giacomo e Júlia Marsiglia , descendentes de italianos, e um filho menor. Giacomo tinha a mesma atividade comercial do meu pai. A crise na indústria açucareira ainda não começara e eles associaram-se e tiveram sucesso. O amor entre meu pai e Júlia Marsiglia, ele anos mais velho do que ela, surgiu inopinadamente, como algo oculto que aguardava o momento de revelar-se. Quando aconteceu, teve início um drama que os fez penar durante quatro anos, incapazes de tornar concreto, visível, o que era palpável e claro no íntimo deles.
A sociedade entre Otto e Giacomo aproximou mais as duas famílias, e intensificou a dor de Otto e Júlia. Subjugados pela consciência e por razões morais, amavam-se pelo olhar, vigiavam as próprias palavras, jamais se reuniam sem testemunhas, e mesmo quando não as tinham, por acordo tácito, procuravam-nas, contanto que não ficassem a sós, quando o que mais queriam era sumirem-se um no outro. Com os respectivos consortes dissimulavam elevando o nível de compreensão e carinho que lhes era natural, mas se estavam todos reunidos a encenação escapava do controle e chegava ao exagero, sendo alvos de brincadeiras dos circunstantes, que os deixavam extenuados para sustentar o frágil pedestal em que se assentava o segredo do seu amor. Momentos em que suas almas mais se esgarçavam: a expansão dispersa de sentimentos que deviam estar canalizados entre os dois. O receio mórbido de que a atração que os imantava chegasse ao conhecimento de quem quer que fosse robustecia-lhes a arte do fingimento, enquanto lhes desvigorava o organismo.  Viviam vidas duplas, penosa autofagia de emoções que os depauperavam a cada dia.
Com a crise do comércio do açúcar houve redução das exportações, perdeu-se muito dinheiro, a sociedade foi desfeita, e fomos viver no Rio de Janeiro. Giacomo, incapaz de suportar a ronda da falência, morreu de repente.  Meu pai continuou no ramo de exportações, agora de café. Morávamos no mesmo edifício, em Botafogo. Ele e Júlia Marsiglia, a um passo de proclamarem o roteiro dramático de suas vidas, minados em seu interior pela tortura do amor execrado, adoeceram. Fazia quatro anos que se autoimolavam numa paixão platônica. Dois dias antes de morrer (minha mãe faleceu dois meses depois), meu pai me contou tudo, compelido pelo remorso. Pediu que trasladasse seus restos mortais e os de Júlia (falecida em janeiro de 1932) para o cemitério de Maruim. Assinara com ele um documento que está comigo, certamente no primeiro e único encontro que tiveram desassistidos.  O traslado seria feito na época que eu julgasse oportuna para não causar embaraços de qualquer espécie, e que os túmulos ficassem distantes um do outro, nem os nomes deles inscritos nas lápides , apenas as datas de nascimento e morte, e a frase: "Descanse em paz quem muito amou em silêncio". Acreditava, diante do meu espanto, que se a vida negou, a morte não teria o direito de juntá-los. Deus havia reservado para os dois a união dos espíritos." Assinado por Judith Sachs, filha de Otto e Marlene Sachs. Rio de Janeiro, 12 de março de 1932.
Antes de me levantar, fiquei imóvel alguns instantes refletindo sobre o que acabara de ler. Abri a porta, para devolver o documento ao homem esquisito, que logo apareceu sem que eu o chamasse.
– Incrível! Essa história dá um romance.  Encontrei o que procurava.  Muito obrigado, Sr…
Curvou a espinha, solene:
– Otto Sachs.
        
* Paulo Fernando Teles Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)

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