Beatas, beatos e ofícios de fé
Publicado em 01 de junho de 2019
Por Jornal Do Dia
*Rangel Alves da Costa
Nas antigas do tempo, nos idos onde a fé e a devoção eram presenças constantes nos corações nordestinos e sertanejos, pelas estradas e ruas as novenas, as procissões, os cortejos levando santos em estandartes. Muitos pediam chuvas, muitos pediam paz, mas todos exercendo apenas seus ofícios de profunda religiosidade. E nas matrizes e igrejinhas aquelas vozes bonitas, afinadas, nas alturas louvando as bem-aventuranças sagradas. Mãos segurando terços e rosários, joelhos rentes ao chão, chamas de velas reluzindo as faces enrugadas de tempo e marcadas de luta.
Um tempo de beatas, beatos, de um povo abnegado na fé. Casebres e casinholas tomados de imagens santas, de fitas de Juazeiro, de relíquias em madeira e gesso dos santos de devoção e também do Padim Padre Ciço e do Frei Damião. Noutras vezes, pelas veredas surgindo pessoas atrás de um humano salvador. Um beato, um místico, um missionário, um acreditado no seu destino de redenção e salvação, conduzindo um povo em missão sagrada. Um mundo de beatas, beatos, devotos e abnegados às promessas de fé. E assim as comunidades e as povoações alimentadas pelo pão da profunda religiosidade.
A história registra os feitos e as abnegações de muitas beatas. Mulheres como Beata Maria de Araújo (Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, famosa pelo milagre da hóstia transformada em sangue, em Juazeiro do Norte, no Ceará, e devota do Padre Cícero), Nhá Chica (Francisca de Paula de Jesus), Madrinha Dodô (Maria das Dores, seguidora do Beato Pedro Batista, de Santa Brígida), tiveram existências em sua maior parte dedicadas aos ofícios de fé, aos cultos sagrados, dedicação à igreja, à preservação de seus cultos e credos.
Também os beatos José Lourenço (seguidor do Padre Cícero e fundador de uma comunidade religiosa na região do Crato, no Ceará) e Pedro Batista (instalado numa comunidade de Santa Brígida, na Bahia, e tido como conselheiro e curador, atraindo diversas romarias). Nas mulheres, geralmente apenas a abnegação, a devoção, os ofícios de fé, mas nos homens algumas características especiais, pois todos aparentando uma função messiânica de salvação de almas, pregações contra as injustiças sociais e até atividades políticas.
Padre Cícero Romão Batista e Antônio Conselheiro politizaram suas práticas e suas pregações. Os beatos e beatas do Nordeste, contudo, diferenciam-se do conceito geral de beatismo proposto pela Igreja Católica. Segundo a Santa Sé, ser beato é ser possuidor de uma qualidade de santo, por possuir uma vida exemplar e de devoção ao sagrado. Já no contexto nordestino, o beatismo pode ser tido como a expressão da fé de um povo, o máximo respeito aos mandamentos da igreja, o culto e a devoção aos anjos e santos. Mas também a abnegação aos cultos, às santas missões, às pregações religiosas.
Na perspectiva nordestina, o beatismo possui basicamente duas vertentes: uma liderança carismática que vai conduzindo o sertanejo à salvação (a exemplo de Pedro Batista e Zé Lourenço dos Caldeirões), e aquele devotado aos ofícios sagrados e aos ensinamentos das lideranças religiosas surgidas. Este último, também chamado de seguidor, caracteriza bem o beatismo nordestino, pois exemplificando aquele que pode abdicar de um modo de vida para se dedicar aos ensinamentos de líder, aquele que faz da igreja o verdadeiro lar espiritual, aquele que se faz completamente devotado aos ofícios, às liturgias, às preces e orações.
No verdadeiro beatismo, porém de feição mais antiga, aquele retrato tão conhecido: homens descalços e levando cruzes perante o templo de sua comunidade religiosa, mulheres vestidas de roupas compridas, xales ou lenços na cabeça. Terços, rosários, livros santos, tudo faz parte do aparato beatista nordestino. Para o povo em culto quase permanente e devoção extremada, o que mais importa é o sentido da salvação. Daí fugir das coisas mundanas e pecaminosas para se entregar ao que agrada aos olhos do Senhor.
Em Poço Redondo, noutros tempos, o beatismo era prática comum entre as mulheres de mais idade. O que se tem hoje como devota ou praticante do catolicismo, noutros idos era de mais profunda abnegação. E além da igreja pode ser avistada a maior expressão de tal abnegação, pois nos dias maiores da Semana Santa havia luto fechado, jejum absoluto, proibição de varrer casa e até de tomar banho, com o sentido do luto e da dor tomando conta de muitos lares. Tudo em nome da fé.
No caso de Dona Zefa da Guia, a tão conhecida parteira, rezadeira e guia espiritual de grande parte da população sertaneja, sua ação beatista se mostra bastante peculiar aos dias atuais. Na verdade, em sua ação não é difícil encontrar vestígios do beatismo de Pedro Batista, por exemplo. E assim por que ela não só comanda uma comunidade de cunho histórico, tradicional e religioso, como serve de guia moral e espiritual a seus seguidores. A guerreira da Guia expressa um sentido maior de cura dos males do corpo e de salvação do espírito e da alma.
*Rangel Alves da Costa, Advogado e escritorMembro da Academia de Letras de Aracajublograngel-sertao.blogspot.com