COLÓQUIOS EM TEMPOS DE CORONGA
Publicado em 17 de abril de 2020
Por Jornal Do Dia
* Lelê Teles
Liga a câmera, mulher. Aê.
Puxa a cadeira aí, minha preta.
Com açúcar ou sem acúcar? Ah, aqui em casa também é sempre sem açúcar.
Pois é, minina, enquanto uns fazem lives outros fazem deaths.
Sabia que lá nos esteites o coronga mata muito mais os pretos que os brancos?
Não. Tem nada de genética não, minha flor, é necropolítica na veia (o achille mbembe é quem tava certo); pretos têm menos empregos que permitem home office, por isso ficam mais expostos.
Né isso, amore? É o que eu tenho dito, essa de home office já é uma realidade mesmo, minina, os patrões perceberam que ao invés de pagarem aluguel de salas, água, luz, internet, vale refeição e o cacete, é melhor mandar os empregados pra casa, gastarem a água, a luz e a internet deles.
Essa fala de isolamento vertical, obsessão dessa alma sebosa que nos preside, é pra matar preto e pobre. Quem você acha que vai voltar a trabalhar?
O homem não tem voltado esse discurso genocida dele pro vendedor de churrasquinho, pro garçom, pro atendente da havan e pro chapeiro do madero? É com essa gente que eles querem voltar a entupir metrôs e ônibus.
Eles que lutem, que se cuspam e que se matem, é mais gente pra virar cobaia daquele cloro-placeboquina.
Minina, não foi isso que eu falei lá no grupo da família? O presidente usar um pronunciamento à nação pra fazer propaganda de remédio, como se fosse o Sílvio Santos vendendo jequiti?!
Né isso, nega? O governo vai comprar aquele veneno com a grana do povo e dar pro povo tomar. E ele ainda teve o disparate de dizer que é como aplicar água de coco na veia!
\pois é, minina… e tu sabe como andam as coisas lá na África? Pois num é isso que eu tenho falado? Dizem que o mundo despertou mais humano, que o coronga fez as pessoas se importarem com a vida dos outros…
Era isso que eu ia dizer: vidas negras importam?
Só se fala na Suíça, na Itália, até com a vida daqueles parasitas da família real britânica eles estão se importando. Nada sabemos sobre o continente negro: quantos mortos, quantos países em isolamento, chegou ajuda humanitária, teve envio de máscaras, montaram hospitais de campanha… quem se importa?
Viu lá, se não é o Didier Drogba e o Samuel Eto’o para pularem na jugular dos colonizadores franceses, já estavam a distribuir alguns tipos de cloroquinas em África? Cobaia, fia, é desumanizador demais!
Como eu disse: uns fazendo lives e outros deaths.
Lembra daqueles atentados que rolaram na Europa, daqueles mercenários disfarçados de muçulmanos? Ataques ao Charlie Hebdo, à boate Bataclan… lembra da comoção do mundo? Aí os mesmos tarados atacaram a Nigéria, o Mali… e num teve essa comoção toda.
Tá acontecendo de novo.
E o povo dizendo que vai surgir uma nova humanidade pós-coronga, que o vírus veio com virulência para nos ensinar uma lição… como se vírus fosse chegado a master classes.
Num vai ter essa de humanidade ac/dc – antes e depois do coronga – o povo tá bonzinho, mas é com medo da morte, tão pensando mais em si que nos outros.
Gente boa e caridosa sempre teve. Agora, esses que surgiram de uma hora pra outra, fazendo selfie com cesta básica e mendigo ao fundo, são os legítimos technosapiens, de humano esses aí só tem a forma; esses vão continuar sendo filhosdaputa pós-coronga.
Quem nasceu pra ser cachorro, há de morrer latindo.Bom, xô preparar um lanchinho aqui porque a menina acabou de acordar; vai ser um longo caminho até me adaptar, mãe solo em home office e home schooling não é pra amadores não, amore.
Beijos.
Saravá.
* Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista