Terça, 14 De Janeiro De 2025
       
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Conversa com o senhor arcebispo


Publicado em 09 de novembro de 2014
Por Jornal Do Dia


* Paulo Fernando Morais
                                                              
Juro por todas as coisas mais sagradas, senhor Arcebispo, que não temos nada a ver com o misterioso desaparecimento de dona Liana Campelo, após oito meses trabalhando  em nossa casa. Exatamente, o senhor é ótimo observador: muito religiosa e de classe. Nossa companheira nos ofícios da catedral. No dia seguinte contamos ao delegado toda a história, desde o dia em que a contratamos. Julga que foi precipitação nossa?  Realmente pode ter ocorrido algo inesperado,  um chamado da família. Sabe que ela é de Minas Gerais? Pois então!
Eu e Janice formamos um casal de católicos praticantes, de temperamento tímido e inofensivo, incapazes de fazer o mal a quem quer que seja. Não perdemos missa, rezamos o terço diariamente, e fazemos parte da congregação Apostolado dos Filhos do Altíssimo. Por que Janice não veio comigo? O temperamento. Frágil, para não dizer de difícil controle.

Idosos, aposentados, razoavelmente saudáveis, visto que dores peregrinas já percorrem nossos corpos, com os incômodos físicos cada vez mais presentes, necessitamos de alguém que nos ajude nos trabalhos domésticos. Sei que o senhor Arcebispo não dispõe de muito tempo para me ouvir. Obrigado; serei sucinto. É que acho necessário revelar nosso modo de vida e a natureza que nos habita, e confrontá-los com as injustas suspeitas que recaem sobre mim e Janice por causa da ausência prolongada – são cinco dias – e o destino ignorado da nossa empregada.

Contratamos dona Liana por recomendação da Casa da Doméstica, instituição criada e mantida pela nossa Arquidiocese. Ficamos constrangidos quando uma funcionária nos indicou uma dama de meia-idade, traços finos e atraentes, cheia de mesuras, rapapés, enfim, modos de nobreza; difícil imaginá-la com tais prendas esfregando o chão, lavando pratos, desinfetando banheiros. O senhor Arcebispo não me entenda mal. Não estou subtraindo dessas trabalhadoras qualidades tão desprendidas,  ainda que a imagem que se propaga delas não seja esta. Queríamos uma pessoa simples, de modos discretos, sobre quem pudéssemos exercer autoridade, ordenar serviços e cobrar resultados, dentro da medida exata da cordialidade. Convencemo-nos de que havia um engano. A  apresentada preenchia as exigências de patrões de palacetes, gente da alta, e não a de dois professores inativos. Não teríamos sequer como pagar-lhe salário compatível com sua presumível operosidade.
Sei que estou abusando da sua apostólica paciência, mas antes da sentença dos homens submeto-me à justiça divina, aqui representada por Vossa Excelência Reverendíssima. Entendo: compromissos inadiáveis; evitarei pormenores.

Pois bem, minha preocupação com ordenado e a fila de custos que o segue, reforçou seus modos refinados, os quais usou para tranquilizar-nos. Perguntou se éramos mesmo os professores Ubaldo e Janice Gomes; que ficássemos sossegados, porque o salário seria igual ao que pagaríamos a qualquer empregada.
Acompanhou-nos até a casa. Precedeu-nos na entrada. Sim, dessa feita Janice estava comigo.
Mostramos-lhe seu  aposento, os demais cômodos, enquanto ela fazia observações curiosas sobre a vida em geral.  Ao voltar para trocar-se, convocou-nos para uma reunião dali a minutos,  a fim de inteirar-se do cotidiano da casa.                              

Pouco depois, surgiu de farda, avental e touca, e sentou-se à cabeceira da mesa da sala – imagine, senhor Arcebispo, no meu lugar! – ao tempo em que nos interrogava e fazia anotações. Claro, se se trata do mesmo assunto para todos o lugar na mesa é irrelevante. O senhor é um sábio. As perguntas dela demonstravam conhecimento da função. Embora relutássemos, alegando que não havia nada de extraordinário em nossa vida de velhos aposentados, pediu que disséssemos como eram nossos hábitos diários, porque dali em diante faria o possível para aproveitarmos o tempo da forma mais agradável. Janice olhou para mim intimidada, e ponderou que não se preocupasse, nossa rotina era quase franciscana; retrucou que, mesmo assim, sempre haveria algo a turvar a atmosfera da nossa plácida ociosidade. Falou assim, senhor Arcebispo, no ponto do vernáculo. Perguntei se já havia trabalhado em Aracaju. Estava há alguns meses na cidade, aquele era seu primeiro emprego, porque as casas que lhe foram oferecidas eram de casais com filhos.

Dona Liana introduziu mudanças que nos permitiam pensar que, a cada dia, habitávamos uma casa diferente. Móveis eram mudados de ambiente, porta-guardanapos luziam com guardanapos de pano, diligentemente engomados e arrumados, substituindo os de papel; aparelhos de jantar e de chá, faqueiros com talheres de prata nunca usados, presentes ainda do nosso casamento, enobreciam nossas refeições, enquanto comíamos com exagerada temperança, encabulados com a fidalguia que espantara  a naturalidade a que estávamos acostumados. Qualquer prato, por mais frugal que fosse, vinha artisticamente guarnecido, confundindo nosso paladar. Apesar da ruptura da habitualidade e o estilo de vida requintado,  agíamos na condição de hóspedes.

As inovações que fazia e ela própria nos deixavam inibidos, o prazer das surpresas cedia lugar à impressão de que se tratava de disfarçada tirania, e só nos restava aguardar o esgotamento das novidades. As coisas funcionavam de acordo com as regras delineadas por ela, com eficácia asfixiante, que nos impedia até de pensar. Mal tentava achar meus óculos, ei-los como mágica trazidos por ela; Janice levantava-se para procurar a bolsa, e dona Liana a colocava ao seu lado; se eu girava o olhar pela sala, ela informava que o jornal estava no quarto; se abria uma gaveta, me acalmava dizendo que a carteira de dinheiro estava na calça que eu havia tirado. E quando lhe perguntamos o segredo de antecipar-se aos nossos pedidos, explicou que era seu dever descobrir o que queríamos e não esperar que disséssemos. Suas invenções perderam o sabor de agradável descoberta e assumiram as de grilhões. Passamos a viver fugindo dela, perdemos a liberdade, a maior parte do tempo isolados no  quarto, para onde levamos o computador, livros e o que fosse necessário para nosso uso. Certo dia, Janice teve uma crise nervosa, destravou a língua inundando com frases blasfemas a boca de comunhão diária. Começamos a detestar a hora das refeições, emagrecíamos, enquanto ela nos prodigalizava um descanso de mortos. Ora batia à porta para me lembrar o lanche, ou o telefonema para um amigo, ou para dizer a Janice que estava trazendo algo mais leve para ela vestir-se, por causa do forte calor. A coerção dissimulada em conforto. Foi o que pensamos, senhor Arcebispo. Pessoalmente, não me sentiria bem  demitindo quem nos ajudava com tanta solicitude.  Janice defendia-se no silêncio. Afinal de contas o chefe de família é quem decide. Mulher vibrante e incansável, que veio ao mundo como a personificação do servilismo sufocante, dona Liana chorava algumas vezes. E todas as noites, quando bem tarde se recolhia, o vento trazia até nosso quarto o som de um pranto mórbido. Sondamos se estava com algum problema, talvez pudéssemos ajudá-la; sorria explicando que eram pesadelos, que a acompanhavam desde criança.

O senhor está atrasado, a pontualidade é uma virtude, e lamenta nossa situação. Serei brevíssimo.  Entendo.
No dia anterior ao seu desaparecimento, não percebemos nada fora da rotina. Bom, à noite não ouvimos seu choro. Não; não deixou nada do seu uso pessoal, tampouco escritos de qualquer natureza. Quarto limpíssimo.  Tenho certeza, sim, nenhuma pista. Terá sido uma abdução alienígena?! Vossa Excelência Reverendíssima tem senso de humor inigualável. Muito obrigado, por ter-me ouvido com fraternal resignação. É o que eu e Janice esperamos: um dia tudo será esclarecido.                                                
                                          
* Paulo Fernando Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)

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