Nos dias escuros.
Curtir a fossa
Publicado em 22 de março de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
Em mim, o efeito da chuva é fatal. Basta cair duas gotas de água sobre o asfalto em brasa de Aracaju, sinto vontade de esvaziar uma garrafa de uísque ouvindo os ganidos roucos de Ângela Rô Rô.
As urgências próprias da vida adulta impedem qualquer espécie de entrega aos apelos do firmamento, no entanto. Escrevo sóbrio e mau humorado como um funcionário público em vias de se aposentar. Após uma vida inteira de dedicação ao bem comum, o coitado reúne todas as suas forças para cumprir a carga horária e desviar os olhos cansados do futuro incerto. O seu maior pesadelo é ter de comprar remédios com o salário minguado.
Chove em Aracaju. Pela janela do carro, nego moedas a vendedores ambulantes encharcados, ainda mais pobres do que é o costume, com saudades da pobreza suada a que estavam habituados. Eu também me sinto ainda mais miserável nos dias escuros. Com a gasolina a mais de cinco reais, o remorço mastiga os meus ovos quando ligo o ar condicionado.
Sim, eu fiz o L, sob as mesmas circunstâncias faria de novo. Mas o gesto mimetizado no período eleitoral não apaziguou as contradições então sufocadas em meu peito. Votei pela Democracia. No fundo, entretanto, importo-me apenas com o meu próprio conforto, quero uma vida boa, não passo de um burguês safado.
Burguês sem grana, beletrista do proletariado, padeço o fim do mês, conto os dias e os trocados. Não tenho dinheiro para uma garrafa de uísque, não disponho de tempo para curtir a fossa e ouvir Rô Rô a toda altura, de cabo a rabo. Conto com o apreço desconfiado das mercearias de bairro, entretanto. Um sujeito gordo anota o meu nome numa caderneta surrada. Bebo cerveja fiado.