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De costas para o atraso


Publicado em 24 de outubro de 2023
Por Jornal Do Dia Se


* Ronaldo Lima Lins

Acontecimentos de repercussão mundial provocam cenas às vezes de inegável impacto. Algumas surgem como escândalo, quando faltam meios para levar certos processos adiante. O Conselho de Segurança da ONU, Lula tem razão, constitui um fruto da II Grande Guerra e do equilíbrio de forças de então, com o poder de veto conferido a cada um de seus cinco integrantes: Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia. Em termos práticos, trata-se de uma situação anacrônica, incapaz de integrar o conjunto de tendências que participam hoje das discussões internacionais. É o que explica a falta de sintonia com as opiniões e o ritmo mal compassado daquilo que se verifica nos sentimentos e movimentos do planeta, quanto à guerra de Israel contra os palestinos. Foi por isso que no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, com um gesto enfático, seus integrantes deram as costas para a Embaixadora norte-americana, Michelle Taylor, que então falava.
Gestos, como afirmava George Lukács, no seu livro A alma e as formas, podem conter, muitas vezes, a essência do que se quer dizer. Nos meios diversos de comunicação, a humanidade se expressa pela oralidade, o verbo escrito, as armas, mas também… através de gestos que, dando a impressão de não transmitir nada, trazem mensagens de fundamental importância. Os ativistas da Comissão de Direitos Humanos, quando se ergueram, sabiam o que estavam fazendo. Atravessando fronteiras, a opinião pública internacional parou para escutar o que, ali, as palavras não diziam e, mesmo depois de encerrada a cerimônia, os gestos, como sinais radiofônicos, continuavam se expressando. O Império havia errado fragrantemente optando pela parcialidade num conflito que exige, ao contrário, senso de medida e lucidez, enormes medidas de lucidez, se o que se procura diz respeito à Justiça e a princípios de humanidade.
O confronto que opõe ricos contra pobres, as imagens que nos sufocam apenas por assisti-las pela televisão e a incapacidade dos estadistas de defender interesses e virar os olhos para o outro lado, quando morrem mulheres, crianças e homens em quantidades não razoáveis, já adquiriu números escandalosos. Uma criança atingida por um míssil, Lula acerta novamente, faz calar a intensidade dos argumentos. É preciso interromper a matança, talvez fosse necessário nos erguermos todos, por um minuto, horas ou pelo tempo necessário, e nos associar aos que defendem os direitos humanos: dar as costas para a opressão, venha de onde vier… Vide as manifestações em Bagdá, Paris e Londres.
Se ouvir constitui um ganho, apesar da propaganda previamente dirigida na maioria das vezes com má-fé, gestos têm a capacidade de convocar as pessoas de boa intenção a se somar em nome da noção de fraternidade. É preciso reconhecer que, neste momento, a sociedade se recusa a silenciar. Em toda parte, pessoas saem às ruas para defender, além da liberdade, simplesmente a vida. Sem ela, sabemos todos, a opressão ganha a guerra, esteja onde estiver. Cabe observar, ainda, que a ONU, com suas limitações, enquanto não nos venham outros ganhos, irradia ecos de indignação. É pelo menos um modo de chegar à alma. Se os vivos não falam, que escutemos os mortos. Eles contaminam e enchem as pilhas de corpos descartáveis. E não se calam.

* Ronaldo Lima Lins, escritor e professor emérito da Faculdade de Letras da UFRJ

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