Vista ampla da Rua Capitão Salomão na década de 1950
Estância e o aroma dos jasmins
Publicado em 01 de agosto de 2020
Por Jornal Do Dia
CARLOS MODESTO
Vista ampla da Rua Capitão Salomão na década de 1950
Nos turbulentos anos do fim da Segunda Guerra Mundial, quando tinha três anos de idade, comecei a notar que minha cognição iniciava a compreender os momentos incipientes de vivência humana. Era um garoto traquino, inquieto e sonhador, por isso alguns familiares alcunhavam-me de Cabrito.
Estância era o meu paraíso infantil,onde a alegria constante floresceu durante os dez anos em que nela vivi.Como um grande tesouro de saudade, levei esses momentos alegres e inesquecíveis para um cantinho especial da minha mente subconsciente, e mesmo vivendo depois longe, em outras regiões, não apaguei essas lembranças da minha terra natal.
Os jardins das praças e das casas eram repletos de jasmins, cujos perfumes exalavam para toda a cidade. Talvez, quem sabe, esse cheiro agradável não era o principal causador do efeito embriagador amoroso de seus habitantes?Todos ali se conheciam, e a morte de um sensibilizava a comunidade. Estância era uma grande família.
Os bares tradicionais como o Bar Sul Americano, de Josias Modesto; o Bar Central,do Sr. Nozinho;e o Bar Chic,de José Gomes de Oliva, o Zeca Tripa,eram pontos focais dos encontros de amigos que tinham algo – ou nada – para fazer,com seus salões de sinuca e mesas onde seus fiéis frequentadores jogavam "gamão", comiam doce de leite, salame, o famoso Romeu e Julieta (queijo com goiabada) e o cafezinho extraído das cafeteiras elétricas. Nessa cadência da vida rotineira,colocavam seus "causos" e fofocas em dia. As praças, durante os domingos, eram uma verdadeira festa, com os namorados passeando de um lado para outro de mãos dadas. Houve uma fase inesquecível que ainda me recordo como se fosse hoje, vendo os jovens de então, de ambos os sexos, andando de patins pelas calçadas da Praça da Matriz, tendo como testemunha as preguiças, animais lentos, onde dos altos dos pés de oitis tudo observavam.
Os vários trechos do rio Piauitinga, e suas águas ainda límpidas, tornavam-se pontos de banhos, cujos nomes jamais foram esquecidos: Poço da Pedra, Poço do Carro, Poço da Paca, Poço das Tripas, Poço das Meninas, A Bacia e o Poço do Ouro eram locais aprazíveis de prazer e diversão. Os domingos eram mais festivos no Poço da Pedra, isento da maldade existente hoje, onde os naturalistas estancianos tomavam banhos nus, brincando no escorrego de suas pedras. Os doces e bolos de D.Leonor (mãe de Pedrinho Babão) e o ensopado de galinha de Dona Julinha (minha avó paterna), nas festas de fim de ano na praça principal, punham todos com água na boca. A Feirinha do Porto e da Santa Cruz vendiam os famosos beijus que deixaram saudades. A Sorveteria A Primavera, de Dona Jocasta (esposa do Dr. Pedro Soares), era o ponto de encontro da gurizada, dos adolescentes e dos casais de namorados, após a saída dos cinemas São João e Gonçalo Prado.
A sociedade estanciana constava de nomes como os de Dr. Júlio César Leite, Diógenes Freire Costa, Raymundo Souza, o jornalista Alfredo Silva, Cunegundes Mello, Cândido Dortas, Dr. Jessé Fontes, o rábula Chiquito Pires, Nivaldo Silva & Irmãos, Dr. Pedro Soares, a colônia árabe e muitas outras figuras inolvidáveis.
Nos diversos cantos dos bairros os adolescentes passavam a noite contando "causos" de assombração, baseados em supostos eventos sobrenaturais acontecidos na cidade, ou influenciados pelos filmes e revistas em quadrinhos do gênero terror, ampliados ainda pelas noites sombrias, quando Estância tinha escasso sistema de iluminaçãocedida pela usina da Fábrica Santa Cruz, durante o anoitecer até as 21 horas, quando a cidade ficava novamente às escuras.
O Cruzeiro era o clube social que promovia festas, apresentava cantores famosos e nos carnavais proporcionava bailes para crianças e adultos. Era a época dos lança-perfumes, dos confetes e serpentinas nas festas momescas no interior do Grêmio. Nos desfiles graciosos de carros estandartes diversos pela Rua Capitão Salomão, as caretas e cabeçorras faziam a alegria dos garotos de então.
Os serviços de alto-falante fizeram época e foram apreciados por todos, onde por quase todaa cidade suas gigantescas bocas amplificadoras de voz projetavam vibrações sonoras, divulgando músicas diversas, notícias sociais e propagandas comerciais. Esse tipo de entretenimento teve seu apogeu antes do surgimento do rádio, mas ainda continuou tendo vez quando o saudoso Dermeval Costa, na fase de sua administração do Cinema São João, direcionava o alto-falante da cabine em direção ao jardim da Rua Capitão Salomão, encantando os casais de namorados que por ali passeavam com as vozes de um Cauby Peixoto ou Nelson Gonçalves, absorvendo o perfume que exalava dos pés de jasmim. Momentos que ficaram gravados em todos que viveram aquela época áurea.
As festas de São João e de São Pedro sempre foram as mais apreciadas pelos habitantes da nossa terra. Quem viveu naquele pretérito jamais esqueceu das saborosas guloseimas feitas de milho, aipim e carimã manufaturadas pelas peritas doceiras que pululavam na Estância. Os licores, as fogueiras, o barco de fogo, as festas do casamento caipira, e o amanhecer do dia seguinte, com Estância cheirando à pólvora dos resíduos das espadas e busca-pés. As crianças partiam cedo à procura à procura das tabocas de bambu para arancar os barbantes de sisal. Tudo isso era uma festa para o corpo e alma.
Numa cidade pequena como a nossa não poderia caber muitas beldades exuberantes, mas algumas delas se destacavam em padrão de beleza e deixavam babando muitos marmanjos daquele tempo, lembrando algumas dessas lindas estancianas. Na Rua Gumercindo Bessa, com todo respeito, as filhas de João Nascimento Filho; na Praça da Matriz, as filhas de Teixeirinha; na Avenida Getúlio Vargas, as filhas de Oscar Macêdo; no início da Rua da Miranga, as filhas de Cândido Dortas. Esssas são algumas que ainda minha cognição deixa-me recordar.
Quero também lembrar dois grandes professores que fazem parte da história de Estância, dos quais fui aluno de ambos: a professora Joaquina Souza, com quem estudei do primeiro ao segundo ano primário, no seu educandário que ficava em frente ao Hospital Amparo de Maria; eo Professor Azarias Santos, na Avenida Getúlio Vargas, com o qual completei o curso primário em regime de internato. Grandes educadores, ainda hoje recordados.
Outro momento marcante das minhas lembranças eram as festas de Natal, do Amparo, do Bonfim e da Santa Cruz. Essas reuniões recreativas ao ar-livre constituiram uma alegria para todos os habitantes da cidade. O parque com seus carrosséis de cavalinhos, as ondas (plataforma giratória ao alto que movimentava sinusiosamente), os balanços e os barquinhos foram entretenimentos queridos da garotada.
Viajar para Aracaju era um verdadeiro incômodo para muita gente por falta de conforto, e muita alegria para outros, cujos balanços da marinete significavam um gostoso passatempo. A estrada Estância/Aracaju era de barro e por cima piçarra, levantando bastante poeira pela estrada. Nós assim vivíamos pelo que a tecnologia tinha a nos oferecer no momento. E que felicidade tínhamos quando avistavámos A Cabeça do boi? Um morro com uma cruz que ficava onde hoje é a Cidade Nova, e significava que Estância se encontrava perto.
Em nossa cidade não havia água encanada, a população recorria aos aguadeiros com seus barris montados num burro e serviam por toda sua urbe. Essas águas provinham de fontes bem conhecidas e sem poluição, porém, por razões ainda contraditórias, dizem que muitos desses ambulantes em algumas ocasiões, por motivo de preguiça, recorriam às águas correntes do rio Piauitinga, onde periodicamente ocorria epidemia do cólera. Claro que em poucas residências de pessoas abastadas existiam tanques que levavam o líquido precioso aos encanamentos instalados.
Não poderia terminar esta matéria sem lembrar as matinês e soirées dos cinemas São João e Gonçalo Prado, casas exibidoras de filmes que promoviam o maior e encantador momento de alegria e prazer. Foram eles o grande sedativo para acalmar as dores do físico e da alma do operário estanciano.
E assim, amigos e conterrâneos do Jardim de Sergipe, fiz nesta matéria de saudade um bosquejo sentimental de uma parte maravilhosa da minha fase infantil, integrada numa sociedade democrática, onde os amigos eram leais e a vida era mais bela, pois quando o homem não guarda recordações é porque não viveu. Por que então não esqueci até hoje o perfume de jasmim que exalava de suas flores?
* Carlos Modesto é cineasta em Salvador-BA