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Estar e não estar aqui


Publicado em 26 de fevereiro de 2025
Por Jornal Do Dia Se


* Ronaldo Lima Lins

Em consequência dos labirintos que ligam a arte à vida, não são poucos os mistérios que cercam os processos de comunicação entre as narrativas e os observadores. O próprio autor avalia com dificuldade por onde se insinuam os caminhos do sucesso ou do insucesso de suas produções. Há repercussões que só se passam na posteridade, sem explicações convincentes a oferecer do ponto de vista teórico. Convergências entre o que se disse e o que, na ponta da linha (ou seja, na reação do leitor) efetivamente ocorre, a inteligência explica com dificuldade. Felizes são aqueles que acertam no processo, garantindo o laço que se estabelece entre um ponto e outro do sistema, para assegurar que os contatos se realizaram e o sucesso se fez presente.
O filme ‘Ainda estou aqui’, dirigido por Walter Salles, com Fernanda Torres e Selton Mello nos papéis principais, não parece aclamado gratuitamente onde entra nas salas de exibição. A prisão, tortura e sumiço do corpo de Rubens Paiva abriu feridas não cicatrizadas no psiquismo brasileiro, depois da ditadura militar e a ausência de punição de seus algozes. Mas não só. A atriz e o diretor, numa entrevista concedida nos Estados Unidos a Christiane Amanpour, âncora da CNN, e reproduzida algumas vezes pela emissora, colocaram bem as questões. A política de extrema direita de Jair Bolsonaro atualizou os temas da tortura e as nostalgias do antigo regime. Este cidadão já transitou pelo poder e se encontra às voltas com processos judiciais nas costas, devendo responder no Supremo por infrações cometidas. É um renegado. Mesmo assim, possui seguidores dispostos a ocupar o governo, com ele à frente, e refazer trajetórias para todos mais do que conhecidas.
Através da tragédia de Eunice Paiva e de seus filhos, sabemos, em conjunto, o que significa a opressão. Por outro lado, nos achamos numa situação de testemunhas frente ao crescimento mundial da direita extremada, movida por retóricas mais do que experimentadas por ocasião do nazismo e da II Grande Guerra. Graças a isso, a obra transpõe barreiras e se introduz na alma das pessoas, independentemente de seus idiomas e nacionalidades. Quem pode ficar insensível ao sofrimento de um personagem como Eunice Paiva, na interpretação de Fernanda Torres? Impossível não estremecer quando se toma conhecimento da presença de agentes na sua casa, aterrorizando crianças e a detendo para interrogatórios, sobre as sombras da ausência definitiva do marido. Invade-nos a mente a figura do capitão, agora inelegível, elevado à função de deputado federal, quando pegou o microfone e, publicamente, elogiou a figura (impune) do torturador Brilhante Ustra. Num fragmento de tempo em seguida, o mesmo se sentou na cadeira de presidente da República com suas pregações em favor do golpismo.
‘Ainda estou aqui’, no Brasil, provoca, talvez, impacto maior e mais devastador. Tal fenômeno não escapou nem a Fernanda Torres nem a Walter Salles. Eles não se acomodaram aos efeitos fáceis da metáfora. Sabem que, em semelhante aspecto, o país pode caminhar perigosamente à deriva, à beira de se perder. Estar aqui implica (e a película chama a atenção para o fato) no convite sobre a necessidade da consciência e da atenção. Um cochilo quem sabe nos conduzirá ao desastre. Isto porque “os de lá” não esmorecem. Militam na causa dos atentados antidemocráticos. Fazer frente a eles é um modo de assegurar que não esquecemos.

* Ronaldo Lima Lins, escritor e professor emérito da Faculdade de Letras da UFRJ

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