O Chaplin de 'Tempos Modernos', abrindo os caminhos obstruídos pelos homens de ação.
Eu, grevista
Publicado em 26 de maio de 2018
Por Jornal Do Dia
Minha pena largada, junto à poeira e os entulhos do fundo da gaveta, não incomoda ninguém. Fosse eu um caminhoneiro, e tudo seria diferente. A paralisia de meus nervos cansados de tanta prosa, tanto verbo cuspido à toa, causaria comoção nos homens da cidade, transtornos na ordem pública. Alguém observaria minha renúncia, a face corroída pelo assombro, e, milagrosamente, hemorragias desatariam nos corredores dos hospitais, quilômetros de engarrafamento entupiriam estradas e avenidas. O Estado, consternado, aguardaria atônito o pulsar de minha veia exaurida.
Uma greve não passa de idéia materializada. A fadiga acumulada durante décadas de insatisfação escarrada sem aviso prévio no meio da rua. Perdas salariais, reivindicações históricas, faixas e panfletos inflamando a revolução… Tudo isso resumido no rosto raivoso de um sindicalista suado, enfastiado com as promessas sempre renovadas de negociação.
A despeito da natureza política inerente a qualquer espécie de mobilização coletiva, e apesar da acusação de intransigência realizada pelos donos do mundo ao mencionar as categorias em greve, não se pode negar nunca, a ninguém, o direito sagrado de levantar o dedo médio após o desconforto de uma agressão. O perdão é uma invenção do cristianismo, e a religião, a história prova, nunca foi uma companhia aconselhável para a política.
Eu, grevista, feito o Chaplin de ‘Tempos Modernos’. Quando pisam no meu calo, eu grito um palavrão, mando tudo ao diabo. Não é muito educado de minha parte, não foi assim que mamãe ensinou, mas esse mantra recheado de imprecações, doenças e secreções incriminando um transeunte distraído, lava minha alma como uma missa encomendada. Praguejando à vontade, eu sigo andando. Insolência e arrogância abrindo caminhos obstruídos pela má vontade e indolência dos homens de ação.