EU VOU TIRAR VOCÊ DESSE LUGAR
Publicado em 17 de abril de 2021
Por Jornal Do Dia
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos
Foi-se o tempo em que cabaré era apenas sinônimo de coisa chula ou de lugar impróprio moralmente. É verdade que a expressão foi se transformando e assumindo significados diferenciados a depender do tempo, das circunstâncias e da cultura local. Produzida no interior de São Paulo, na cidade de São José do Rio Preto, Cabaré é hoje, também, uma das cachaças mais caras do país, promovida, inclusive, por nomes famosos da música brasileira, a exemplo de Leonardo e Eduardo Costa.
Em 1985, Margareth Rago publicou o livro "Do cabarê ao lar- A utopia da cidade disciplinar Brasil (1890-1930)". Trata-se de um valioso estudo sobre o cotidiano da vida operária no país, revelando diversos aspectos, inclusive os de ordem sexual. Entre as suas discussões, o papel da mulher no processo de ideologização da classe burguesa, relegando o feminino a ser a apenas e tão somente a guardiã do lar. E, portanto, todas as "senhoras" fora desse padrão estariam segregadas à discriminação, daí muitas artistas por exemplo, cantoras de moral ilibada, serem tratadas como "putas". Dercy Gonçalves chegou a falar sobre isso várias vezes e de igual modo a atriz Laura Cardoso, inclusive em recente entrevista para Pedro Bial.
Na França, de onde se originou o vocábulo cabaré, significa taberna, usada no século XIX para designar restaurantes ou salões, onde se realizavam espetáculos com direito a música e dança. O seu layout era um convite para uma convivência mais íntima e recolhida dos olhares. No cinema, foi muito bem retrato em diversas circunstâncias e nas mais variadas oportunidades, de filme de Faroeste à gangster. Várias versões também em teatro.
No Brasil, assumiu uma conotação bastante pejorativa e popularizou-se como sendo um lugar para serviços sexuais, também conhecido em algumas regiões do Nordeste de "puteiro" e também de a "casa da luz vermelha" ou ainda de "brega". Refugo de jovens iniciantes na vida sexual, padres nada castos, homens de posses com fama de bem-casados e até mesmo de miseráveis sedentos de uma noite de prazer por qualquer conto de réis.
Essa representação do cabaré alcançou em cheio à criatividade musical brasileira, sendo mote inspirador de vários sucessos populares. Alguns, para além de chacotas, significativas reflexões sobre a prostituição, a condição miserável e humilhante da profissional do sexo e até mesmo lugar de narrativa do imaginário do brasileiro.
Leonardo, citado no início dessa crônica, tem em seu repertório sertanejo a canção "Pega fogo cabaré". João Bosco, em 1981, lançou "Cabaré", no disco "Essa é sua vida", uma composição com Aldir Blanc. Na voz de Reginaldo Rossi e da dupla Bruno e Marrone, a canção "Boate Azul" segue fazendo um enorme sucesso. No tempo presente, destaque para "Eu vou tirar você do cabaré" (2020), de Israel Muniz: "A partir de hoje, ‘cê vai / ser minha mulher / Eu vou tirar você do cabaré".
Mas nenhuma canção supera o clássico "Vou tirar você desse lugar", originalmente gravado por Odair José em 1972, tendo recebido várias outras intepretações, inclusive de Caetano Veloso, num dueto histórico com o cantor e compositor da música, em 1973, num festival no Palácio de Convenções do Anhembi, em São Paulo. O mesmo Caetano que em 2003 marcou a trilha sonora do filme "Lisbela e o Prisioneiro", em belíssima versão de outro sucesso popular, de Fernando Mendes: "Você não me ensinou a te esquecer" (1978).
"Vou tirar você desse lugar" é uma canção popular, mas de grande sensibilidade, que trata de um tema polêmico para a época e ainda carregado de enorme preconceito, sem exageros e de forma bastante romântica e poética, colaborando para humanizar um ambiente de pecado para os mais pudicos, mas de grande apelo e de grande carência, sobretudo de dignidade e de atenção social, principalmente nessa época de pandemia.