Quinta, 02 De Maio De 2024
       
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Gênero pagão


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Publicado em 16 de abril de 2024
Por Jornal Do Dia Se


Majestosa

Rian Santos
 
Os leitores cristãos têm motivos de sobra para fugir desta página como o diabo foge da cruz. Ao invés de me ater à programação piedosa de uma Vila da Páscoa, por exemplo, faço questão de lembrar Dona Ivone Lara, arauto do samba, a música do morro, gênero pagão.
Para o biógrafo Lucas Nobile, autor de ‘Dona Ivone Lara: a Primeira-Dama do Samba’, a trajetória da artista, uma verdadeira humanista, não encontra paralelo na história da música brasileira.
Eu assino embaixo, menos interessado em documentos, marcos e datas, atento à vibração de uma voz. Em carne e osso, Dona Ivone Lara foi uma mulher negra, como tantas outras. Sofreu um bom bocado, certamente. Sorriu outro tanto. Ao cantar, no entanto, transformava-se em energia pura. Na tristeza e na alegria.
Nasceu para o samba -Triste é o dia quando a página de Cultura dos periódicos assume a função de obituário. Remedia-se assim, em alguns poucos parágrafos, o talento negligenciado em vida, como a proclamar, redundante: Inês é morta.
Eu, de minha parte, resisto sempre ao sentimento fácil dos necrotérios. Se um sambista passa dessa para melhor, por exemplo, celebro o morro e a música. Sem uma lágrima de mentira. Sem a dor tomada aos seus próprios. Sei feliz, a vida que se aproveita em um verso. Morre o homem, fica a fama.
Deus me livre das homenagens tardias. Desse pecado, quero as mãos limpas. Se Dona Ivone Lara canta hoje nas alturas, entre os anjos de pele negra, deixou, antes de partir, algumas das melodias mais bonitas da música brasileira. Não há o que lamentar, portanto. Muito ao contrário. “Quem nasceu para o samba não pode parar”.
O brasileiro é um povo de memória curta. Esquece os vivos, assombrado pelos fantasmas dos próprios mortos. Pouco antes de passar desta pra melhor, Dona Ivone Lara falou a um repórter da Folha de São Paulo, desanimada. A força da imaginação não promovia a sua música. Aos 90 anos, reverenciada por todos os grandes do meio, com um repertório repleto de composições inéditas guardadas no fundo da gaveta, sem despertar nenhuma interesse comercial, a sambista tinha a impressão de sufocar, enterrada viva.
Foi-se Dona Ivone Lara, majestosa. E eu só consigo pensar na frase atribuída a Cazuza, no filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho, lançado em 2004. Devastado pela doença que lhe roubaria a alegria escandalosa da juventude, em seus últimos dias de vida, o poeta constata, como quem oferece alento: “Morrer não dói”.
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