LIVRE EXPRESSÃO E INTOLERÂNCIAS
Publicado em 09 de novembro de 2020
Por Jornal Do Dia
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos
Para além da pandemia, o ano de 2020 está chegando ao fim com disputadas eleitorais nacionais e internacionais. Ambas marcadas pela polarização e pela radicalização, onde as escolhas provocam cisões e rivalidades muitas vezes descomedidas. Isto, em grande parte, porque as pessoas, de um modo geral, ainda não estão suficientemente maduras, apesar da idade, para respeitar as decisões que as pessoas, em sua singularidade, tomam. Não é obrigado ninguém entender ou mesmo aceitar as escolhas dos outros. Mas o mínimo de respeito é o que se espera de um mundo realmente civilizado.
Essa questão das intolerâncias políticas, esta semana, decisiva para as eleições municipais brasileiras e, sobretudo, nacionais para os norte-americanos, me fez pensar sobre uma canção de Raul Seixas, que ele divide a autoria com Cláudio Roberto, do LP O dia em que a terra parou, de 1977. Não está entre os sucessos do maluco beleza da Música Popular Brasileira, mas tem grande importância, principalmente do ponto de vista da reflexão e considerando a época em que fora lançada.
Sapato 36 é a faixa 1, do lado B do disco produzido pela Warner Bros Record. Trata-se de uma queixa de um jovem que calça 37 diante da imposição do pai que o filho calce 36. O jovem reclama que lhe aperta o pé, que o pai não percebe que ele cresceu e que já pode escolher seu próprio sapato "E andar do jeito que eu gosto".
Não se trata de uma rebeldia ou falta de amor do filho para com o pai. Mas, do pai não perceber que o filho cresceu e que ele, como uma pessoa, aprendeu a ter suas próprias escolhas. Que isso não implica em deixar de amá-lo ou contrariá-lo. Insistir em calçar o sapato 36 num pé 37, lhe causa dor e tristeza. Não lhe deixa feliz e que a imposição do pai só piora as coisas.
No auge da canção, Raul expressa o sentimento máximo da situação do filho para com o pai, na seguinte passagem: "Você só vai ter o respeito que quer / Na realidade / No dia em que você souber respeitar / A minha vontade / Meu pai". Assim deveria ser na política: cada um com seu sapato, com suas escolhas e vontades. Sem que isso fosse um cavalo de batalha a destruir relações familiares, de trabalho e de amizade.
Se essa desgraça democrática acontece nos Estados Unidos, avalie para quem mora numa cidade do interior sergipano, como eu. Lagarto sempre foi marcado pela polaridade. E o espaço para uma terceira via é sempre um parto sem êxito. Nossas escolhas políticas nem sempre são encaradas como algo livre e espontâneo. E muitas vezes nosso caráter e valor são questionados por essas escolhas. Até mesmo o amor que expressamos pelas pessoas são colocadas em questão.
Tudo isso porque, eu, de modo particular, como tantos de minha geração, resolveram não mais calçar o sapato 36 ou número que a tradição, os grupos ou a família impõem. Aprendi a calçar o sapato que melhor se adeque ao número de meu pé, seja ele qual for, em qualquer circunstância.
E nesse sentido, me valho do mesmo Raul Seixas, nesta mesma canção para reforçar o que penso sobre minhas escolhas, inclusive as políticas: "Pai já tô indo embora / QUERO PARTIR SEM BRIGAR / Pois eu já escolhi meu sapato / Que não vai mais me apertar".