MALUCO POR FLORES
Publicado em 14 de novembro de 2023
Por Jornal Do Dia Se
* Thiago Fragata
Coisas que acontecem comigo, um homem negro que gosta de flores. Preciso destacar que sou homem negro porque num país machista/racista o caso ganha uma complexidade inimaginável. Estive em um bairro da minha terra natal, São Cristóvão, que costuma ter batidas policiais a luz do dia por conta da presença de comércio de drogas, popular “boca de fumo”. Mirei um canteiro, nele algumas flores que atraíram minha atenção. Veio a euforia de ter no meu jardim pois não possuía as tais espécies. Nesse momento, repito sempre o mesmo ritual: recolho as sementes,não as flores mais bonitas.Daí enchi o bolso da bermuda despreocupadamente.
Minutos depois, recobrei a consciência sobre o contexto “quem sou? aonde estou?”ops! O primeiro pensamento que sacudiu juízo foi: e se acontecer de ser abordado aqui pela polícia? Imagine a cena, vou explicar aos homens de farda que eram sementes (mas sementes de flores!); Colhi porque não tinha estas no meu jardim; porque foi o lugar que as encontrei e, por último; porque não me controlei, sou maluco por flores!Triste constatar que seria violentado antes de tentar explicar tudo isso. Não apenas seria interrompido como machucado. Daí completar que sou um trabalhador, enfim, um cidadão seria inútil. Sai dali depressa, atônito, desconfiado
Cheguei ao mercado. Zé de Fulô é o nome de um restaurante onde sentei pra tomar cerveja. Naquele dia um militar aposentado que alimentou divergências políticas comigo durante um bom tempo sentou perto, numa posição que fatalmente convidaria uma prosa. Fizemos alguns ritos preliminares após o cumprimento monossilábico, aceno de cabeça. Um destes foi consultar o celular. Eu havia colocado os meus óculos no bolso das sementes, justo no bolso das sementes, saquei o acessório sem me ater ao detalhe. As sementes espalharam-se no colo, destacando-se no preto da bermuda. Não tive coragem de olhar pra cara do “amigo”, juntei com as mãos cuidadosamente temendo caírem no chão ou, pior, o vento espalhar.
Feito isso, enrubesci e travei nos assuntos insossos que ensaiamos engatar. Fiquei a imaginar o que estaria pensando meu acompanhante sobre as sementes que enchiam meu bolso. Será que das possibilidades aventadas por ele, uma delas concluía “devem ser sementes de flores”!?
Enfim, pedi as contas, fui pra casa de mamãe antes de chegar alguma viatura ao local, atendendo ao possível chamado do “amigo”. Essa loucura por plantinhas já me levou a muitas enrascadas. Em outra oportunidade, falarei do dia que estava pedindo a uma jovem senhora algumas mudinhas e o marido cismou que meu interesse não eram plantas de verdade mas a flor que era sua esposa. O ciumento sacou arma e me botou pra correr; era correr ou morrer (risos).
*Thiago Fragata é historiador, escritor e multiartista E-mail: thiagofragata@gmail.com