MITO MANIA
Publicado em 06 de agosto de 2020
Por Jornal Do Dia
"Desconhecereis a mentira e a mentira vos escravizará", mestre Cafuna.
* LelLê Teles
Filhos do carbono e do amoníaco, convido-os, nessa gélida manhã brasiliense, a uma despirocante reflexão.
Depois de uma noite enluarada, tomando vinho filtrado por uma máscara de feltro, na agradável companhia de minha lívida amiga da pele cheirosa, saltou-me uma ideia da cabeça, numa pirueta amalucada e circense, qual um acrobata em desequilíbrio ou um ébrio e vexoso funâmbulo.
Tento, agora, botar essa ideia de pé; e para isso conto com vossa estimosa atenção.
Para tanto, porém, é mister que comecemos pelo início.
Tome nota: jamais confunda mito maníaco com mitomaníaco.
À guisa de um experimento clínico e no afã de diferenciar essas duas categorias de mentirosos, descreverei esses dois tipos humanos e, ainda, mostrarei alguns estudos de caso para melhor compreensão deste fenômeno psicossocial que tanto mal faz à nossa boa gente.
Mito maníaco é todo espécime humano/vacum, mocho ou chifrudo, que se torna hiper hipnotizado ao ouvir o aberrante som do berrante presidencial como se estivera a escutar um profeta a soprar o seu chofar de corno de carneiro.
Nunca a definição de "comportamento de manada", teoria de Gustave le Bon, se mostrou tão adequada.
Sim, é de gado que estamos a falar, mas de um gado bípede, um certo bumba-meu-boi urbano.Ocorre que esse estranho rebanho corre atrás de um sujeito mentiroso e o chama de mito.
A questão é que todas as mentiras contadas por esse profeta de araque são aceitas como a mais pura verdade, porque, este, esforça-se para fazer da verdade uma grande mentira.
A terra é plana, o triângulo é quadrado, vacina mata, nazismo é de esquerda…
Negar a ciência e a história não é apenas mentir, omitindo a verdade, é mentir para destruir a verdade, colocando a mentira em seu lugar.Baudrillard chamava esse negacionismo de "o grande simulacro".
Mas… por que diabos alguém acredita que uma mentira deslavada possa ser veraz?, inquieta-se o leitor atormentado.
A razão é simples, esse mentiroso, berrante em punho, carrega consigo uma forte simbologia; o poder do mito.
Você só conseguirá compreender a força simbólica que tem um mito na construção de narrativas quando ler a obra seminal de Joseph Campbell, "o herói de mil faces".
Mas é bom que você saiba, o mito, em si, já é uma grande mentira.
Na definição de Fernando Pessoa, "o mito é o nada que é tudo".
E olha que de mentira pessoa entende, ele é criador de heterônimos, forjou um cristo português sebastiânico e disse que é um fingidor o poeta, um mentiroso portanto.
Porém, a mentira do poeta difere da mentira desse falso profeta.
Porque, esta, tem método, é fingida, calculada e serve a uma ideologia.
É isso que move o mentiroso do berrante, mentir é um projeto de poder.
Como um mágico, ele falseia a realidade tornando a mentira uma substituta da verdade.
sim, há mentiras e mentiras. Um significante pode ter variados significados.
Por isso é tão importante estar atento à natureza das coisas.
Há a mentira cênica e a mentira cínica, bem como a mentira clínica e patológica, a mentira deslavada, a mentirinha, a meia verdade, a mentira calculada, a descompromissada e aquela que se comete para se tirar proveito, auferir lucro, obter vantagens.
Mas não se assuste, leitora dissimulada, com seus pequenos e exíguos pecados, mentir é natural e, em alguns casos leves e moderados, é até saudável.
O que seria do poker sem o blefe, que graça teria todos os jogos de carta sem os ardilosos lances de olhos ou o cutucar de pés sob mesas, o que seriam dos cassinos sem a malandragem dos croupies?
Teríamos casamentos se os noivos não estivessem dispostos a enganar o padre no ato da cerimônia, concordando com tudo aquilo que se tem que concordar?
O que seriam das anedotas de mesa de bar sem o bêbado metido a rico ou o falso mulherengo com disfunção erétil?
Como seriam as diversões noturnas sem os silicones, os soutiens de bojo, os megahairs?
Percebe que há mentiras e mentiras?
Quando Deus trovejou sua voz tonitruante das alturas onde vive e questionou o seu neto, Caim, sobre o paradeiro do irmão, o fratricida respondeu ao avô com uma pergunta insolente:
"Acaso sou vigia do meu irmão para saber do seu paradeiro?"
Por agora, deixemos de lado o fato de que essa pergunta do senhor do universo contradiz sua propalada onisciência; aproveitemos o exemplo que ele nos brinda com essa gafe.
Ora, Caim acabara de matar o irmão com violentos golpes de queixada de burro, portanto ele sabia onde estava Abel e sabia perfeitamente que o irmão de lá não sairia.
De facto, Caim mentiu!
Porém, essa mentira não tenta se passar por uma verdade, ela apenas omite a verdade.
E outra, Caim mentiu para não ser punido, agindo em legítima defesa; lembremos que um réu está desobrigado de fabricar ou fornecer provas contra si mesmo.
"A verdade vos libertará", diz o salmo. Balela, a cadeia tá cheia de réus confessos e os tribunais não param de mandar pra casa artífices mentirosos.
"O homem mente desde que começou a falar", falso, mudos também mentem.
"Nada é mais humano que a mentira", bobagem, os animais e as plantas mentem descaradamente.
O que é o camaleão senão um tremendo mentiroso em sua ardilosa camuflagem?
E tem até a nanomentira, a biomentirinha.
Um exemplo? Esse vírus virulento que simula sucessivas mutações para driblar e enganar anticorpos; o que é isso senão mentir?
"A mentira tem perna curta", sim, mas é nos ombros dessa anã que o cabra do berrante tem caminhado a passos largos; foi na cacunda dela que uma facada lhe rasgou o bucho, sem deixar buraco nem sinal de sangue.
É essa mentira, simulacro da verdade, que estar a nos arrastar para o abismo, e é ela que funciona como alfafa para os midiotas, é essa ração diária de mentira que estampa manchetes de fake news, ela é que é perniciosa.
sua razão, única, é auferir lucro, ela almeja resultados, ela procura lobotomizar mentes para implantar uma ideologia.
É isso, chegamos ao final da nossa reflexão de hoje.
Percebe como diferir o mito maníaco do mitomaníaco?
O mitômano, esse enfermo que nega a verdade, mentiroso patológico, compulsivo e irrefreável, mente até para si mesmo.
No entanto, seu doentio hábito de mentir é quase ingênuo; ele não mente com a intenção de obter vantagens, não é isso que motiva sua pseudofilia; ele mente até para se prejudicar.
É um adicto!
Nunca confunda um doente com um sociopata mau caráter.
Já o mito mente de forma calculada, planejada e ardilosa; ele tem um método.
Todos sabemos que há um odioso gabinete operando mentiras, fabricando e disparando inverdades para contaminar a mente dos mito maníacos, esses midiotas desconhecedores da verdade.
Há duas categorias de mito maníacos: os que seguem as mentiras do mito, e as tem como verdade, e os que produzem as mentiras para o mito, distorcendo a verdade.
Os primeiros, diz o venerando mestre Cafuna, ainda têm cura, nada que umas boas chineladas na bunda não resolva; porém, os segundos, só a cadeia, a tranca.
Lá, no xilindró, a terra pode até não ser plana, mas o sol nasce quadrado.
Palavra da salvação.
* Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista