Mundo cão

Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br

Tutor de nove gatos, repugna-me o comércio de pets, os filhotes de laço atado ao pescoço, as jaulas, as vitrines enfeitadas onde a carência mal disfarçada é mensurada, embalada, etiquetada. Mudados em brinquedo, os bichos são vendidos como pelúcia, a peso de ouro.
Os meus bichos foram recolhidos à rua, adotados em eventos solidários promovidos por ONG’s dedicadas à causa animal. Glorinha, uma vira-lata, inferniza os vizinhos há uns bons quinze anos. Ganidos de cachorro doido, com o diabo no couro. Custa-me passeios diários. Preciosa, não vale um tostão furado.
Há algo de desumano em adquirir um bicho, como se este fosse uma coisa, um objeto. Não é muito diferente de açoitar um cavalo até o limite de suas forças, como fazem os carroceiros premidos por extrema penúria. Comprar um bicho tem algo do gesto de empurrar um homem negro no fundo de um camburão, no porão de um navio, há séculos, quando era admitido levantar o chicote contra um homem, a depender de sua origem, os deuses a quem oferecesse sacrifícios e oferendas, a depender da cor de sua pele.
Vejo as madames com poodles e yorkshires no colo, em pleno shopping. Carregam os bichos e sacolas das melhores grifes. Ostentam o cuidado dispensado à criatura na coleira, mais que tudo. Elas juram de pés juntos, colecionam bolsas caríssimas, sapatos de couro legítimo, mas têm coração.
Sim, sei das crianças famintas que pedem esmolas nos semáforos. É também por eles que escrevo. Este é mesmo um mundo cão.