Segunda, 06 De Janeiro De 2025
       
**PUBLICIDADE
Publicidade

Não é o Enem, estúpido!


Publicado em 16 de maio de 2020
Por Jornal Do Dia


 

* Zara Figueiredo Tripodi
Para o leitor que acompanha o noticiário educacional, não são mais novidades as manifestações do atual Ministro da Educação, Abraham Weintraub, que oscilam entre o negacionismo e a falta de condições mínimas ao diálogo, beirando mesmo a vulgaridade. Assim, constitui-se tarefa elementar reunir os despropósitos produzidos pelo gestor da pasta, uma das mais importantes e estratégicas para qualquer governo.
Mesmo diante da facilidade da tarefa, haja vista o "excesso de oferta" dos disparates proferidos pelo ministro, chama-se atenção sua fala sobre o Enem, em reunião virtual no Senado, no último dia 05.
Convidado pelo presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre, para se manifestar acerca da realização do Enem, o ministro teria respondido, segundo relato de parlamentares, em reportagem da Folha (05/05), que o Exame não teria sido feito para corrigir injustiças, mas para selecionar; que o adiamento não seria justificável, uma vez que nem todos os estudantes que farão o Enem têm as mesmas chances e que existiriam pessoas mais inteligentes que outras, assim como algumas desprovidas de inteligência. Diante de afirmações tão levianas, contrárias a toda evidência científica produzida até hoje, e porque não dizer preconceituosas, o primeiro ímpeto é desconsiderar, tendo em conta o profundo desconhecimento de processos cognitivos e sociais por parte do Ministro, o que poderia explicar, em parte, seu anonimato acadêmico.
Passado esse primeiro impulso, e com algum esforço altruísta sustentado pelo pressuposto que se deve ensinar àqueles que pouco aprenderam, mesmo diante das inúmeras experiências que lhes foram reservadas, considera-se importante explicar ao Ministro que dentre os vários equívocos que incorre da sua fala ao Senado, está o erro de raciocínio formal. Ora, uma vez considerada certa premissa como verdadeira, a tendência é que toda a conclusão seja também considerada verdadeira. Mas será que a premissa é verdadeira? A paródia contida no título do artigo é pedagógica neste sentido. Trata-se do bem-sucedido slogan interno da campanha de Bill Clinton de 1992, criada pelo então assessor do presidenciável, James Carville, e que bem ilustra duas perspectivas analíticas de determinado raciocínio: conteúdo e forma.
A primeira delas, e mais conhecida, refere-se mesmo ao conteúdo substantivo da mensagem que informava, àquela altura, o peso da economia sobre os resultados da competição eleitoral, em detrimento de outros aspectos, como o próprio triunfo na Guerra do Golfo, alcançada por Bush "pai". A segunda, circunscrita à forma, diz respeito ao erro de raciocínio causado pela impossibilidade de apreensão da lógica dedutiva. Carville foi cirúrgico ao identificar que o argumento lógico seria a recessão econômica vinculada em contexto de guerra, e não o debate da guerra do Iraque em si.
As afirmações do ministro da Educação repousam sob o mesmo erro de raciocínio detectado pelo assessor de Clinton: não é o Enem, é a desigualdade! Custa ao Ministro compreender que, quando se reivindica o adiamento do Exame, a questão de fundo é o aumento das desigualdades que a sua manutenção pode gerar, não a prova em si. Ora, nunca se afirmou ou se esperou que o exame corrigisse injustiças, mas também não se pode assumir como razoável que o Estado acate lógicas que aprofundem as desigualdades, sobretudo as educacionais. O Enem é apenas a forma visível de um conteúdo mais denso, expresso pela desigualdade de condições, de insumos, de acesso a serviços básicos que inviabilizam uma competição educacional, por definição, desigual. Com a suspensão das aulas da rede pública, os estudantes das camadas mais pobres estarão em posições ainda mais desfavoráveis, não por serem "menos inteligentes", mesmo porque a ciência já demonstrou que a inteligência é construída, não um dom inato, destinado a alguns. A desvantagem se dará porque à ausência de aulas somam-se outras dimensões de desigualdade pré-existentes, inclusive de acesso a internet em casa. Diferentemente do seu par da rede pública, grande parte do aluno da rede privada, além de estudar em instituições que se adaptaram para aulas remotas, possuem condições infraestruturais para acompanhá-las, sem desconsiderar o pertencimento social e as práticas daí decorrentes que produzem efeito positivo sobre os processos de aprendizagem.
A realização do Enem conforme defendido pelo Ministro significa aceitar a falsa premissa de que apenas parte de nossos jovens pode aspirar à mobilidade social via diploma universitário e implica, sobretudo, assumir e endossar a desigualdade educacional como uma política de Estado.
* Zara Figueiredo Tripodi, professora adjunta de Política Educacional do Departamento de Educação da UFOP. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFOP

* Zara Figueiredo Tripodi

Para o leitor que acompanha o noticiário educacional, não são mais novidades as manifestações do atual Ministro da Educação, Abraham Weintraub, que oscilam entre o negacionismo e a falta de condições mínimas ao diálogo, beirando mesmo a vulgaridade. Assim, constitui-se tarefa elementar reunir os despropósitos produzidos pelo gestor da pasta, uma das mais importantes e estratégicas para qualquer governo.
Mesmo diante da facilidade da tarefa, haja vista o "excesso de oferta" dos disparates proferidos pelo ministro, chama-se atenção sua fala sobre o Enem, em reunião virtual no Senado, no último dia 05.
Convidado pelo presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre, para se manifestar acerca da realização do Enem, o ministro teria respondido, segundo relato de parlamentares, em reportagem da Folha (05/05), que o Exame não teria sido feito para corrigir injustiças, mas para selecionar; que o adiamento não seria justificável, uma vez que nem todos os estudantes que farão o Enem têm as mesmas chances e que existiriam pessoas mais inteligentes que outras, assim como algumas desprovidas de inteligência. Diante de afirmações tão levianas, contrárias a toda evidência científica produzida até hoje, e porque não dizer preconceituosas, o primeiro ímpeto é desconsiderar, tendo em conta o profundo desconhecimento de processos cognitivos e sociais por parte do Ministro, o que poderia explicar, em parte, seu anonimato acadêmico.
Passado esse primeiro impulso, e com algum esforço altruísta sustentado pelo pressuposto que se deve ensinar àqueles que pouco aprenderam, mesmo diante das inúmeras experiências que lhes foram reservadas, considera-se importante explicar ao Ministro que dentre os vários equívocos que incorre da sua fala ao Senado, está o erro de raciocínio formal. Ora, uma vez considerada certa premissa como verdadeira, a tendência é que toda a conclusão seja também considerada verdadeira. Mas será que a premissa é verdadeira? A paródia contida no título do artigo é pedagógica neste sentido. Trata-se do bem-sucedido slogan interno da campanha de Bill Clinton de 1992, criada pelo então assessor do presidenciável, James Carville, e que bem ilustra duas perspectivas analíticas de determinado raciocínio: conteúdo e forma.
A primeira delas, e mais conhecida, refere-se mesmo ao conteúdo substantivo da mensagem que informava, àquela altura, o peso da economia sobre os resultados da competição eleitoral, em detrimento de outros aspectos, como o próprio triunfo na Guerra do Golfo, alcançada por Bush "pai". A segunda, circunscrita à forma, diz respeito ao erro de raciocínio causado pela impossibilidade de apreensão da lógica dedutiva. Carville foi cirúrgico ao identificar que o argumento lógico seria a recessão econômica vinculada em contexto de guerra, e não o debate da guerra do Iraque em si.
As afirmações do ministro da Educação repousam sob o mesmo erro de raciocínio detectado pelo assessor de Clinton: não é o Enem, é a desigualdade! Custa ao Ministro compreender que, quando se reivindica o adiamento do Exame, a questão de fundo é o aumento das desigualdades que a sua manutenção pode gerar, não a prova em si. Ora, nunca se afirmou ou se esperou que o exame corrigisse injustiças, mas também não se pode assumir como razoável que o Estado acate lógicas que aprofundem as desigualdades, sobretudo as educacionais. O Enem é apenas a forma visível de um conteúdo mais denso, expresso pela desigualdade de condições, de insumos, de acesso a serviços básicos que inviabilizam uma competição educacional, por definição, desigual. Com a suspensão das aulas da rede pública, os estudantes das camadas mais pobres estarão em posições ainda mais desfavoráveis, não por serem "menos inteligentes", mesmo porque a ciência já demonstrou que a inteligência é construída, não um dom inato, destinado a alguns. A desvantagem se dará porque à ausência de aulas somam-se outras dimensões de desigualdade pré-existentes, inclusive de acesso a internet em casa. Diferentemente do seu par da rede pública, grande parte do aluno da rede privada, além de estudar em instituições que se adaptaram para aulas remotas, possuem condições infraestruturais para acompanhá-las, sem desconsiderar o pertencimento social e as práticas daí decorrentes que produzem efeito positivo sobre os processos de aprendizagem.
A realização do Enem conforme defendido pelo Ministro significa aceitar a falsa premissa de que apenas parte de nossos jovens pode aspirar à mobilidade social via diploma universitário e implica, sobretudo, assumir e endossar a desigualdade educacional como uma política de Estado.

* Zara Figueiredo Tripodi, professora adjunta de Política Educacional do Departamento de Educação da UFOP. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFOP

 

**PUBLICIDADE



Capa do dia
Capa do dia



**PUBLICIDADE


**PUBLICIDADE
Publicidade