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Narciso em telas


Publicado em 27 de março de 2025
Por Jornal Do Dia Se


* Andrei Albuquerque

 

Ao se falar em narcisismo, de imediato, se atribui a alguém um quadro patológico atrelado a um exercício de egoísmo que desconsideraria os indivíduos e seus afetos, a alteridade.
Classificar uma pessoa como narcisista se tornou comum. No entanto, o pensamento óbvio sobre uma questão produz o mais infértil e excludente em relação a outras perspectivas. Quanto ao narcisismo, esse óbvio encobre o fato de que o Eu/Ego tem o narcisismo em sua formação desempenhando um papel na estruturação do psiquismo. O humano se constitui por meio de sua imagem refletida pelo reconhecimento do Outro em um laço social que forja a identidade de uma pessoa – Freud, Lacan e recentemente Colette Soler colocaram o narcisismo como um estágio inerente à condição humana sem reduzi-lo à vaidade e ao patológico. Durante a análise, a arrogância narcísica tende a ruir porque revela algo sobre a neura do sujeito, a arrogância mascara uma verdade, uma inquietação a ser falada.
Em nossos tempos, também as redes socais se tornaram uma forma de cada um ter a sua identidade reconhecida no que pode ter de mais singular: compartilhar sua doença rara, seus talentos específicos, sua rotina, sua comida, seu pet. E esse compartilhamento tanto pode consolidar um nome do sujeito em seu meio social, um estável “lugar no mundo”, quanto pode ser adoecedor e escravizante ao cair nas redes da exigência de produção constante de conteúdo estimulada pelo estágio atual do capitalismo orientado por uma extração de dados das pessoas que seria aparentemente gratuita.
Então, vemos pessoas que excluídas dos privilégios da meritocracia conseguem, por meio das redes sociais, furar a bolha, ganhar dinheiro e conseguir legitimação de sua identidade, claro que muitos serão triturados pelas mandíbulas das big tech. As redes sociais podem servir como uma ferramenta para a validação de uma identidade, porém sem estar a salvo de ser triturado ou ficar entorpecido – etimologicamente a palavra Narciso teria uma raiz em comum com a palavra narcótico.
Quem assistiu ao filme “Doente de mim mesma” (2022) observou como a protagonista Signe – por não encontrar o reconhecimento de um lugar – vai ingerir em excesso uma medicação para ansiedade, um ansiolítico, até desenvolver uma grave doença de pele que marcará o seu rosto e trará a esperança de alguma notoriedade para ela que não se sente reconhecida em sua função como garçonete.
A personagem convive com Thomas, seu namorado, que é obcecado pela fama como designer em seu meio artístico e insensível aos apelos de Signe que com o rosto marcado, por feridas escarlates em carne viva, passa a ter a atenção dos amigos, dar uma entrevista, tentar ser uma modelo fashion PCD (pessoa com deficiência) e finalmente ter alguma fama, no entanto não consegue captar o reconhecimento das pessoas por muito tempo exceto no grupo de apoio que frequenta para compartilhar os desafios da doença que desenvolveu – ali entre pessoas que compartilham seu sofrimento em grupo Signe encontrará uma posição.
A questão é que todo sujeito faria uma busca por validação e pertencimento ao seu lugar no mundo, inclusive um eremita encontra o seu lugar isolado na montanha, mas não necessariamente livre do Outro. Portanto, a falta da legitimação de uma identidade pode ser gatilho para quadros de depressão, crises de angústia, surtos psicóticos – a exclusão social tende a produzir sofrimento psíquico.
Um lugar de pertencimento pode ser como sapateiro, artista, professor, psicanalista e inúmeros outros, que aponta mais para algo entrelaçado, costurado, na vida de cada um, diferente dos moldes de fama desejados por algumas hipocelebridades, a depender a validação ilusória da fama presenteia o iludido com o vazio da completude e que não raro irá recorrer ao entorpecimento e à ostentação que é postada obrigatoriamente nas redes sociais. Assim, que cada um possa buscar o reconhecimento de sua identidade, mas sempre com um pé atrás quanto a procurar cegamente o reconhecimento do Outro sem esquecer que ninguém se reduz a uma identidade apenas e que essa também pode ser questionada! Assim, Narciso ficava capturado por seu reflexo nas águas de uma fonte e atualmente fica capturado por telas e likes, todavia continua um caçador rolando o feed. Sem esquecer que Narciso sustenta o seu espelho…

 

* Andrei Albuquerque, psicanalista e psicólogo. Mestre em psicologia social/UFS. Publicou 2 livros, além de vários artigos.

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