Sexta, 24 De Janeiro De 2025
       
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Nas terras por onde andei


Publicado em 27 de abril de 2019
Por Jornal Do Dia


 

*Rangel Alves da Costa
Minha inquietude nem sempre se contenta em sair andando por aí. De repente quer até levantar voo para chegar mais ligeiro por todo lugar. E assim porque a vontade é grande de conhecer e conhecer muito mais. Ou até novamente vivenciar aquilo que no passado já foi avistado.
No passo ou no voo, como se fosse possível cortar os caminhos pelas asas da vontade de chegar, a verdade é que a vontade de conhecer, estar e vivenciar, acaba me tornando presente em lugares jamais imaginados, ou noutros bem pertinho, mas que jamais tinham sido alcançados.
Dessa insistência em sempre seguir para conhecer é que sempre me faz além da porta da frente.  O meu passo vai, minha caminhada segue, minha necessidade de ir sempre mais adiante vai me guiando. Não há tempo de chuva ou sol, nublado ou de indecisão, pois sei que tenho de andar por aí para escrever na memória cada letra avistada na vida, do antigo ao agora.
Chego na beirada do pote e o barro antigo, lanhada de tempo e sede, sempre me ensina alguma coisa. Chego perante a cancela do velho casebre e os restos toscos e encardidos daquele mundo, ecoam a me chamar para conhecer suas entranhas. Olho ao redor, no beiral da estrada tomado de jurubeba em flor, então sinto vontade de ficar um pouco mais para uma prosa de olhar, mas sei que tenho de seguir. E vou… 
A cada passo um encontro que faz valer o sacrifício de tanto andar. Casas, casebres, moradias fincadas no barro e cipó. Aió e embornal pelos cantos, candeeiro de parede e oratório de fé, tudo me ensina. Enxada e enxadecos, foice e gadanho, retalhos de chão e história, de luta pela sobrevivência e retratos do mundo-sertão. Sou moço do mato, sou da cidade não. Nem quero ser. 
O batente ainda manchado do sangue da luta, o tronco alquebrado mais adiante, o esquecido baú com suas saudades guardadas, tudo isso me ensina. E também me ensina a palavra matuta, a mão calejada, a face marcada de tempo. Olhares fundos e profundos, testemunhos de tudo aquilo que tanto eu quero ouvir, saber e conhecer.
Não prossigo sem antes seguir aos pés da cruzinha abandonada, já pendendo ao chão, sem mais dizer quem ali tombou pela emboscada. Que tocaia maldosa. Sim, sei que houve um tempo de armas famintas e gemidos soltos, de estampidos saídos dos canos vorazes e de corpos estendidos ao chão. Histórias de carnicentos, de urubus, de gaviões e carcarás.
E vou lendo nas paisagens as letras pelos anos já apagadas. Ninguém quer falar sobre aquilo. Dói demais, dizem. Eu sei que dói. Conheço as artimanhas e os labirintos desses sertões. Um sertão tão belo como a florada do mandacaru, como a suntuosidade da flor da jurubeba, mas também tão feio e medonho quanto a fome, a sede e as vinditas de sangue.
Os clavinotes ainda estão apontados entre os tufos de mato. Cangaceiros, jagunços, volantes, bandoleiros de paga, tudo ainda assombra e amedronta. As folhagens farfalham gemidos estranhos. A avoação da tem-tem anuncia uma presença escondida. Quem será? Meu Deus, meu Deus… 
As aves carnicentas voejam por todo lugar. Em tempo de seca grande é assim. Carcarás, urubus, gaviões, surgem com seus rasantes em busca de bezerro desvalido de qualquer força. Não adianta o aflito sertanejo correr para espantar. A maldade desce ligeira, com bico em punhal, e num instante a sangria avermelha a terra já ressequida de tudo.
Ouço dizer dos fantasmas e assombrações que ainda estão por aí. Tereco me dizia da festança dos mortos em noites de breu. Perto de sua casinha, aonde havia um coito cangaceiro, agora é lugar de festa medonha. Já nas alturas da noite grande, ouve-se o fole tocando, um converseiro sem fim, dança de forró nos carrascais, até briga e bala zunindo, mas jamais avistado pelo olho humano. Tudo parece real demais para uma coisa que ninguém consegue avistar.
Bernardo me dizia dos perigos das caçadas noturnas e dos encontros inesperados. Coisa medonha demais, ele ajuntava. Na espreita da caça perseguida, de repente o mundo se fecha ao redor. Pedra é atirada, assombração passa correndo, mandacaru despenca bem diante dos pés. Conversas de um lado e conversas de outro. Uma voz medonha dizendo que vá embora. Um cachorro de duas cabeças surgido do nada. Armações do caipora, e coisa que um pedaço de fumo resolve tudo. 
Os cemitérios estão debaixo dos umbuzeiros e suas fitas e suas cruzes choram as saudades tantas. Rosários e terços perante o meu olhar. As mãos velhas passeiam ao paraíso enquanto as bocas sussurram as sagradas confissões. Eita coisa bonita nesse povo: sempre o céu na lua, sempre o céu no sol, sempre o céu no prato cheio ou na panela vazia. 
Mas também ainda ouço as sentinelas, as ladainhas, os ofícios de um povo ajoelhado aos pés do altar. As igrejinhas silenciam mistérios. Os santos e anjos saíram para visitar os empobrecidos destes sertões. Por isso que sempre encontro um fogão de lenha aceso. Abro a porta da velha igreja e ajoelho-me. 
Mas não sei rezar, confesso. Só sei pedir a Deus que sempre proteja esse sertão e o seu povo. E não se esquecendo de que também sou sertanejo.
*Rangel Alves da Costa, Advogado e escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

*Rangel Alves da Costa

Minha inquietude nem sempre se contenta em sair andando por aí. De repente quer até levantar voo para chegar mais ligeiro por todo lugar. E assim porque a vontade é grande de conhecer e conhecer muito mais. Ou até novamente vivenciar aquilo que no passado já foi avistado.
No passo ou no voo, como se fosse possível cortar os caminhos pelas asas da vontade de chegar, a verdade é que a vontade de conhecer, estar e vivenciar, acaba me tornando presente em lugares jamais imaginados, ou noutros bem pertinho, mas que jamais tinham sido alcançados.
Dessa insistência em sempre seguir para conhecer é que sempre me faz além da porta da frente.  O meu passo vai, minha caminhada segue, minha necessidade de ir sempre mais adiante vai me guiando. Não há tempo de chuva ou sol, nublado ou de indecisão, pois sei que tenho de andar por aí para escrever na memória cada letra avistada na vida, do antigo ao agora.
Chego na beirada do pote e o barro antigo, lanhada de tempo e sede, sempre me ensina alguma coisa. Chego perante a cancela do velho casebre e os restos toscos e encardidos daquele mundo, ecoam a me chamar para conhecer suas entranhas. Olho ao redor, no beiral da estrada tomado de jurubeba em flor, então sinto vontade de ficar um pouco mais para uma prosa de olhar, mas sei que tenho de seguir. E vou… 
A cada passo um encontro que faz valer o sacrifício de tanto andar. Casas, casebres, moradias fincadas no barro e cipó. Aió e embornal pelos cantos, candeeiro de parede e oratório de fé, tudo me ensina. Enxada e enxadecos, foice e gadanho, retalhos de chão e história, de luta pela sobrevivência e retratos do mundo-sertão. Sou moço do mato, sou da cidade não. Nem quero ser. 
O batente ainda manchado do sangue da luta, o tronco alquebrado mais adiante, o esquecido baú com suas saudades guardadas, tudo isso me ensina. E também me ensina a palavra matuta, a mão calejada, a face marcada de tempo. Olhares fundos e profundos, testemunhos de tudo aquilo que tanto eu quero ouvir, saber e conhecer.
Não prossigo sem antes seguir aos pés da cruzinha abandonada, já pendendo ao chão, sem mais dizer quem ali tombou pela emboscada. Que tocaia maldosa. Sim, sei que houve um tempo de armas famintas e gemidos soltos, de estampidos saídos dos canos vorazes e de corpos estendidos ao chão. Histórias de carnicentos, de urubus, de gaviões e carcarás.
E vou lendo nas paisagens as letras pelos anos já apagadas. Ninguém quer falar sobre aquilo. Dói demais, dizem. Eu sei que dói. Conheço as artimanhas e os labirintos desses sertões. Um sertão tão belo como a florada do mandacaru, como a suntuosidade da flor da jurubeba, mas também tão feio e medonho quanto a fome, a sede e as vinditas de sangue.
Os clavinotes ainda estão apontados entre os tufos de mato. Cangaceiros, jagunços, volantes, bandoleiros de paga, tudo ainda assombra e amedronta. As folhagens farfalham gemidos estranhos. A avoação da tem-tem anuncia uma presença escondida. Quem será? Meu Deus, meu Deus… 
As aves carnicentas voejam por todo lugar. Em tempo de seca grande é assim. Carcarás, urubus, gaviões, surgem com seus rasantes em busca de bezerro desvalido de qualquer força. Não adianta o aflito sertanejo correr para espantar. A maldade desce ligeira, com bico em punhal, e num instante a sangria avermelha a terra já ressequida de tudo.
Ouço dizer dos fantasmas e assombrações que ainda estão por aí. Tereco me dizia da festança dos mortos em noites de breu. Perto de sua casinha, aonde havia um coito cangaceiro, agora é lugar de festa medonha. Já nas alturas da noite grande, ouve-se o fole tocando, um converseiro sem fim, dança de forró nos carrascais, até briga e bala zunindo, mas jamais avistado pelo olho humano. Tudo parece real demais para uma coisa que ninguém consegue avistar.
Bernardo me dizia dos perigos das caçadas noturnas e dos encontros inesperados. Coisa medonha demais, ele ajuntava. Na espreita da caça perseguida, de repente o mundo se fecha ao redor. Pedra é atirada, assombração passa correndo, mandacaru despenca bem diante dos pés. Conversas de um lado e conversas de outro. Uma voz medonha dizendo que vá embora. Um cachorro de duas cabeças surgido do nada. Armações do caipora, e coisa que um pedaço de fumo resolve tudo. 
Os cemitérios estão debaixo dos umbuzeiros e suas fitas e suas cruzes choram as saudades tantas. Rosários e terços perante o meu olhar. As mãos velhas passeiam ao paraíso enquanto as bocas sussurram as sagradas confissões. Eita coisa bonita nesse povo: sempre o céu na lua, sempre o céu no sol, sempre o céu no prato cheio ou na panela vazia. 
Mas também ainda ouço as sentinelas, as ladainhas, os ofícios de um povo ajoelhado aos pés do altar. As igrejinhas silenciam mistérios. Os santos e anjos saíram para visitar os empobrecidos destes sertões. Por isso que sempre encontro um fogão de lenha aceso. Abro a porta da velha igreja e ajoelho-me. 
Mas não sei rezar, confesso. Só sei pedir a Deus que sempre proteja esse sertão e o seu povo. E não se esquecendo de que também sou sertanejo.

*Rangel Alves da Costa, Advogado e escritorMembro da Academia de Letras de Aracajublograngel-sertao.blogspot.com

 

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