O GRANDE ENCONTRO [II]
Publicado em 10 de abril de 2020
Por Jornal Do Dia
* Manoel Moacir Costa Macêdo
Continuam as reminiscências para o "Encontro de Engenheiros Agrônomos de 1973 e Contemporâneos" da centenária Escola de Agronomia da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Adiado pelo "coronavírus" para quando "setembro chegar". Fatos memorizados por quase meio século, inusitados ou não, mas marcantes. Narrativas com vieses de quem memorizou, registrou e escreveu. Jovens com hormônios à flor da pele, espinhas no rosto e coragem inconsciente da juventude. História de vida, é essencial para entender a lógica social.
Vivências sociais, política se acadêmicas qualificam a vida universitária. Não foi um tempo qualquer. Divisa entre o rural e o urbano. Ditadura e democracia. Atraso e modernidade. Somos o que somos, pelas circunstâncias que vivemos. Para o gênio da dramaturgia William Shakespeare, "a vida pode ser nada mais que uma história contada por um idiota, cheia de fúria e tumulto sem sentido algum, [ou] uma sombra que caminha, um pobre diabo que se pavoneia num palco ou na vida e depois não se fala mais dele".
Cantou o artista: "felicidade, passei no vestibular". A faculdade era pública. Saiu na "Tribuna da Bahia" de domingo. Deu na ‘Rádio Sociedade da Bahia’,ouvido na esquecida Rio Real. A única que "pegava por lá".Ninguém lia jornal. Euforia familiar. O primogênito entrou na universidade. Um castelo blindado para poucos. Por lá somente os filhos dos "Cavalcante, Mattos e Baptista" conquistaram tal proeza. Pais semialfabetizados e oriundos da roça. O primeiro rio-realense do Ginásio de Rio Real a entrar na universidade. Projeção no espelho paterno, retirante e agricultor familiar.Ritual completo. Cabeça raspada e comemorações. Cumprimentos no modesto lugar. A primeira carteira de estudante traz a marca da cabeça raspada. A expressão afirmativa na "boina verde". Na sabedoria bíblica "tudo é vaidade e vento que passa".
A primeira matrícula. Apreensão para "pegar" as disciplinas do primeiro semestre.A ordem era alfabética. O "M" não tinha vantagens, estava no meio. Dependia desorte para conseguir as disciplinas na linearidade cartesiana do currículo. Somente "passar", não era suficiente para cumprir a rígida grade curricular. Esperado encontro com os colegas. Novos e desconhecidos. Iniciados os cursos básicos no campus da UFBA em Salvador. Ambiente universitário efervescente.
Cursamos nesse ano uma dezena de disciplinas: Química Geral e Analítica no Instituto de Química, o jovem professor Oscar e Maria Foá com sotaque estrangeiro e deslocada dos traços baianos. Física no Instituto de Física, iniciante e dedicado professor paulista. Botânica no Instituto de Biologia, a professora Letícia e a assistente Ana. Lembrada até hoje. Personalidade ativa e cativante mestra. Geologia Geral, o cabeludo Paulo Avanzo. Desenho Técnico, o compenetrado Armando Colavolpe. Outras como Biologia, Geografia Física, Matemática, Pedologia e Zoologia. Não guardei a identidade de todos os professores. Afinidades foram iniciadas. Algumas pela regionalidade. Como disse Paulo Reis a Itatelino: "você foi um dos primeiros colegas que me aproximei em Salvador, por conta do nosso território, o Vale do Rio Almada". O mesmo comigo e Haroldo. A Fazenda Gavião em Entre Rios onde viviam os seus pais, próxima de minha Rio Real. Conhecia apenas o Byron, fomos colegas no Colégio Estadual Severino Vieira. Disciplinas aprovadas. Não eram específicas ao curso de agronomia, mas oferecidas para vários cursos. Um desafio e tanto.
No decorrer desse ano, ao terminar as aulas matutinas no campus, íamos de ônibus abarrotados, em pé, suor escorrendo no corpo, almoçar no restaurante universitário – RU. Descíamos no Campo Grande. Outra caminhada até o Corredor da Vitória. Imagine a fome de adolescente. Lembro do almoço de domingo: frango assado, macarrão, farofa, leite e goiabada. Tempo e cansaço. No dizer de Gutemberg Guerra, "juventude não se poupa, se gasta". Dificuldades financeiras limitavam o almoço no campus e ao redor. Ao retornar do almoço, encontrava sempre o mesmo colega. O primeiro a chegar para as aulas vespertinas. Adiante, soube que era um colega carente. Não dispunha de recursos para almoçar no campus, nem para custear os deslocamentos. "Tudo que olho no outro, é o que me falta para interferir no meu vazio".
Dever cumprido. Ano encerrado. O vindouro em Cruz das Almas. Ansiedade para cursar as matérias do currículo profissional. Conheci o campus numa visita de um dia. Tempo insuficiente para compreender os veteranos e a sociabilidade do ambiente. Apreensões e medo. Expectativas pelo temido trote. Assim foi iniciada a vida universitária. Para o poeta, "na convivência o tempo não importa".
* Manoel Moacir Costa Macêdo, engenheiro agrônomo