O ovo da serpente
Publicado em 08 de setembro de 2022
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
Confiro o vídeo clipe do single ‘O ovo da serpente’ – um amontoado de colagens audiovisuais realizadas por Alessandro Santana (aka Cabelo), a partir de petardo disparado por Paulinho Só. Deparo-me com o raro encontro de intenção e gesto. Das sugestões realizadas na letra da canção, emerge o fato puro e simples, cuspido, escarrado.
Não haveria como ser diferente. Os dois artistas, o vídeo maker e o cantor, desprezam qualquer espécie de concessão criativa. Orgulham-se, um e outro, de engolir todos os sapos, a fim de preservar filmes e música da influência nefasta das expectativas alheias, sãos e salvos.
A filmografia assinada por Cabelo é tão extensa quanto coerente. ‘Karne Krua – Arquitetando o fim do mundo’ (2015), por exemplo, reafirma a filiação do realizador a certo ideal de independência criativa, essencialmente alheio às noções comercialmente consagradas de produto e mercado.
Antes disso, para realizar o documentário ‘Na estrada do tempo’ (2013), Cabelo acompanhou a banda Plástico Lunar durante três anos. No palco, comendo poeira nas BR’s da vida, no backstage. Nos dois filmes já mencionados, em breves registros realizados nas madrugadas da aldeia, quando o diretor saca a câmera e surpreende músicos e outros freaks em seu habitat natural, a cumplicidade evidente entre as partes explica o sucesso da empreitada.
O filme assinado por Cabelo que mais se aproxima do vídeo clipe que serviu de pretexto para as digressões em curso, no entanto, é mesmo ‘A insustentabilidade das coisas’ (2016), de brevidade pungente. Aqui, ele realiza uma síntese crítica do mal estar tupiniquim, relacionando os momentos históricos de ruptura democrática com atores políticos contemporâneos. Por trás dos episódios evocados, a emergência da psique verde amarela – de um marasmo reluzente.
Texto assinado por Bernardo Tavares, outra alma liberta, dá a liga necessária ao recorte convulsivo das imagens. Um depoimento de Sganzerla, para quem o Cinema não é capaz de grande coisa, mas “pelo menos é uma testemunha do que aconteceu”, serve de mote ao enunciado. Armas apontadas à direita. Traições consumadas à esquerda. A sensação é de impotência. Por isso, o apelo de violência. E voltamos, quase sem perceber, como num círculo perfeito, ao evento seminal, aqui em questão: A eclosão do mal, o ovo da serpente.