O PROTAGONISMO POLÍTICO FEMININO EM LIVRO DE AFONSO NASCIMENTO (1)
Publicado em 07 de janeiro de 2025
Por Jornal Do Dia Se
* Célia Cardoso
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A recente obra de Afonso Nascimento – Lutas pelo poder: ensaios sobre indivíduos e grupos políticos em Sergipe (2024) – se revela na historiografia sergipana ao propor um cruzamento analítico entre direito, história, jornalismo, política e memória. O professor e intelectual sergipano é aposentado do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS), possuindo várias publicações em formato de livros, como o Resistência e a adesão ao Regime Militar, ensaio a partir da Comissão da Verdade de Sergipe (2020), e de artigos jornalísticos e científicos.
Considero essa sua produção imprescindível na área do Direito e ainda, em particular, na compreensão da ditadura militar em Sergipe ao elucidar e dar voz a muitos protagonistas da história política contemporânea local e regional, imprimindo à narrativa historiográfica um tom memorialístico, de quem é um “intelectual público”, de tendência marxista, que não se esquiva em analisar, participar e opinar sobre os fatos políticos, conhecido também por seu perfil de polemista e de crítico contundente, inclusive das esquerdas. Possuidor de um pensamento livre, independente e autônomo, o professor deixa como marca nos seus escritos a perspectiva dos adversários aos regimes autoritários, tendo sido membro atuante da Comissão da Verdade do Estado de Sergipe Paulo Barbosa de Araújo e um exímio conhecedor da política local e regional.
Este livro, elaborado em forma de ensaio, foi dividido em três partes, nas quais o arquiteto do saber vai reconstruindo histórias de várias protagonistas políticas e de intelectuais da contemporaneidade sergipana e/ou nacional cuja atuação se deu antes, durante e depois do Golpe de Estado de 1964, que culminou com a cassação do mandato do governador do estado de Sergipe Seixas Dória (1963-64), bem como de alguns parlamentares e prefeitos sergipanos. Destacam-se ainda, em suas reflexões, análises mais teóricas a respeito da natureza do Estado, Lei de Segurança Nacional, modernidade, sociedade civil, partidos políticos, entre outros temas. O prefácio do jornalista Gilvan Manoel, editor do Jornal do Dia, sintetiza a estrutura da obra, formada por artigos publicados, em distintas datas, em jornais e blogs sergipanos. Este mosaico fragmentado de temas e personagens flui em uma leitura rica em descobertas de trajetórias de vida de distintos posicionamentos políticos, embora quase sempre regidos por atitudes democráticas e de oposicionistas aos arbítrios dos governos ditatoriais. Há uma linha de compreensão que liga todas essas histórias: a convivência docente e discente, o movimento estudantil e greves na Universidade Federal de Sergipe (UFS), principalmente na Faculdade de Direito, que ainda hoje conta com a atuação do seu Centro Acadêmico Sílvio Romero, além disso, todo o cenário de violência do Estado brasileiro no período militar.
Desse modo, na sequência do protagonismo dos estudantes, acontece a apresentação e atuação de grupos políticos e acadêmicos locais, representados por políticos profissionais, advogados, juízes, procuradores da República, professores, ativistas, entre outros. Alguns deles se destacam e merecem capítulos à parte, outros fazem parte da rede de influências e amizade, como os nomes de Silvério Leite Fontes, Osman Hora Fontes, Marcelo Déda, Zé Luís, Zelita Correia e Ana Lúcia, entre outros. Alguns recebem do autor um modo particular de homenagem, embora enviesada por críticas e apontamentos de seus equívocos. Há uma admiração pela luta política de duas mulheres ativistas, Zelita Correia e Ana Lúcia Vieira de Menezes, que contribuíram para a mobilização popular em Sergipe. Zelita tornou-se ícone na luta pela “Anistia ampla, geral e irrestrita” e Ana, pela sua liderança sindical e parlamentar.
Zelita Correia participou ativamente do movimento estudantil da UFS, desde quando foi convidada pelo padre Luciano Duarte para compor a Juventude Universitária Católica (JUC), ainda como graduanda em Direito nos anos iniciais da década de 1960, tornando-se membro efetivo e atuante. Engajou-se na luta política estudantil, compôs a diretoria da União Estadual dos Estudantes de Sergipe (UEES) como vice-presidente, e participou das campanhas de alguns candidatos às eleições do Centro Acadêmico Sílvio Romero, como também de algumas manifestações de rua e do comitê pela anistia estadual. O crescente engajamento político nas lutas sociais levou Zelita à Ação Popular (AP), um grupo político mais radicalizado de defensores do cristianismo, de justiça social e de uma sociedade mais igualitária.
Durante o governo de Seixas Dória, nos princípios do golpe civil-militar de 1964, Zelita já era conhecida pelo seu poder de liderança, e esteve no aeroporto com outras pessoas próximas para receber o governador que retornava de viagem ao Sudeste, onde participou do Comício da Central do Brasil (Rio de Janeiro). Nessa ocasião de grande incerteza política, o chefe do Poder Executivo estadual, defensor das reformas de base de João Goulart, passou pelo estado da Bahia e se encontrou com o ex-aliado político, governador Lomanto Júnior (adesista), declarando a Zelita no aeroporto naquela tarde de 1º de abril: “Princesa, está tudo perdido” (p. 32). Dali, eles rumaram em direção ao Palácio do Governo, já preocupados com os rumores de que militares queriam matar o governador sergipano. Na madrugada daquele mesmo dia, o governador fez um pronunciamento na Rádio Difusora, órgão estatal, em defesa das reformas de base, mas não tardou para ser preso pelas tropas do coronel Silveira e, em seguida, cassado e substituído pelo seu vice Sebastião Celso de Carvalho em 2 de abril de 1964. Os desdobramentos dos fatos a partir do lançamento do Ato Institucional nº1 (09.04.1964), resultaram em ampliação do quadro das perseguições e dos impedimentos, atingindo, sobretudo, seus aliados políticos, com cassações de mandatos de parlamentares e de prefeitos.
Não foram somente os políticos atingidos; a militante Zelita Correia foi encaminhada ao 28º Batalhão de Caçadores (28º BC), permanecendo presa por 52 dias (p. 33) pela sua atuação em programa de alfabetização de jovens e adultos da Secretaria de Educação. A trama de sua prisão é contada pelo autor em detalhes, utilizando-se dos recursos das entrevistas, fontes arquivísticas e obras historiográficas. Para ele, a coordenadora do Movimento de Educação de Base (MEB) em Sergipe era guiada por um pensamento “humanista cristão” e nunca foi comunista ou marxista, mas se utilizou da filosofia de Paulo Freire (tido como “subversivo”) no programa de alfabetização, motivo do confinamento de Zelita por quase dois meses na instituição militar, alcançando a liberdade apenas após o empenho e a luta dos familiares e amigos. Retornou, logo em seguida, à graduação na universidade, onde se formou em Direito em 1965, mas o tormento não acabou: a OAB Sergipe dificultou a sua atuação ao não autorizar o seu exercício profissional no estado. Esse empecilho local fortaleceu a sua ideia de migrar para o estado da Bahia, protegida agora por condição de pessoa desconhecida, local onde acabou conquistando a permissão profissional. Passou alguns anos trabalhando nos interiores baianos, como procuradora concursada do estado, até a sua aposentadoria, segundo Afonso, em decorrência dos traumas vividos durante a sua prisão, apesar de não ter sofrido tortura física (p. 33).
No retorno ao estado de Sergipe, já aposentada, Zelita Correia continuou a atuar na função de procuradora do estado, a convite de personalidades políticas locais, e, ao longo da vida, integrou o setor de Direitos Humanos da OAB, instituição que lhe concedeu algumas medalhas comemorativas em Brasília e em Sergipe, entre outras responsabilidades assumidas. Mas, sem dúvida, o nome de Zelita Correia foi devidamente registrado na história em defesa do movimento da “Anistia ampla, geral e irrestrita” (1975-1979), compondo ao lado de várias mulheres, como Núbia Marques, Ana Côrtes e Laura Marques, e com o apoio de alguns homens, como Jackson Barreto, o grupo fundador do Comitê da Anistia no estado, que saiu em defesa da luta pela liberdade dos prisioneiros políticos sergipanos, pelo fim das torturas e pelo retorno dos exilados. Este movimento, iniciado em São Paulo pela advogada Therezinha Zerbine, se difundiu por várias capitais do país, e ficou conhecido como Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA). Uma história também contada na obra da historiadora Maria Aline Matos de Oliveira, Em busca da liberdade (2021), que ressalta uma particularidade da luta sergipana pela anistia, o importante apoio dos homens de oposição.
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* Célia Cardoso. professora e Pesquisadora do Departamento de História da UFS