O xote fogoso de Joésia
Publicado em 31 de março de 2020
Por Jornal Do Dia
Não vejo necessidade de reiterar a importância fundamental das letras nas canções do repertório identificado como música popular brasileira – trata-se de uma percepção amplamente compartilhada
* Antonio Passos
A amiga Cassiana Borges, pessoa de sensibilidade artística aguçada e sempre antenada nas novidades da música produzida cá na nossa aldeia, me contou que a banda Donali regravou um sucesso de Alex Sant’Anna. Dias depois, sintonizado na Aperipê FM (104,9), tive a oportunidade de ouvir a nova versão da canção "Em Círculos". Essa, infelizmente, parece não ser uma iniciativa comum por aqui. Acho que, de modo geral, os nossos artistas revisitam muito pouco ou quase nada os seus antecessores locais – vejo isso como um desdém, considerando as riquezas do diálogo atemporal nas artes.
A percepção que encerra o parágrafo anterior a este juntou-se a um reencontro recente que tive com uma canção de Joésia Ramos e sugeriu-me o presente comentário. Organizando uma seleção de pequenos textos, para compor uma homenagem às mulheres, resolvi garimpar no rico acervo da canção e cheguei de volta à faixa três do lado A da coletânea de artistas brasileiros lançada em 1984 (com participação especial de Ney Matogrosso): o LP "êta nóis!" – lá está gravado o fogoso xote "Amor Roxo", composto e cantado por Joésia Ramos.
Não vejo necessidade de reiterar a importância fundamental das letras nas canções do repertório identificado como música popular brasileira – trata-se de uma percepção amplamente compartilhada.
Quanto a isso, "Amor Roxo" revela um momento de bela inspiração: "Se eu te dissesse meu amor / Ao luar claro / Que meu coração só bate / Quando e por quem entender / E que me dá um arrepio danado / Teu olhar enfeitiçado / De tanto desejo ter". A revelação da paixão, dita por uma mulher e de mãos dadas com a plena autonomia – "quando e por quem entender". Uma abordagem viva nesses nossos tempos de denúncia dos assédios.
"Fio de cristal / Num veio de águas revoltas / Até que se quebre e solte / Estilhaços no mar / Ai, meu amor roxo / Tanto te dei que me sobra / Desenvenenei a cobra / Desinventei guerrear". Após uma realista e poética descrição da paixão como algo frágil (um "fio") embora intenso (como um "cristal"), envolvida em temeroso contexto (as "águas revoltas"), fatalmente indo dar, estilhaçada, em um mar… Nessa aventura, porém, há a vivência do desapego e da paz despertados pelo desenfreado sentimento – a sobra que vem após a extremada doação, o desenvenenamento da cobra e a "desinvenção" da guerra.
Além de tudo isso, a música é pra lá de fogosa. Não entendo como essa canção pode ficar sem regravações, ainda mais com a liberdade permitida na música popular, na qual, além do aproveitamento da letra e da melodia, para tudo o mais as possibilidades são infinitas… Oxalá essa carência seja suprida!
PS – Após ter escrito este texto, no momento em que estava iniciando o procedimento de envio para o Jornal do Dia, a Aperipê FM tocou uma gravação de "Amor Roxo" na voz de Doca Furtado. Dada a beleza da canção, mais versões não seria exagero.
* Antonio Passos é jornalista