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A fé fraudada, o broco, o pior.


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Publicado em 27 de maio de 2022
Por Jornal Do Dia Se


Carlos Alberto Menezes

Na conjuntura política do Brasil, circula um discurso, sem muito eco no ambiente popular, de pouco uso na pesquisa acadêmica, mas muito forte nos grupos organizados [partidos de oposição, sindicatos, centros de representação estudantil etc.] ou não [facebook, instagram, whatsapp] cuja nota central exprime a ideia de que o governo do país, chefiado por Jair Messias Bolsonaro, tem no fascismo o modelo inspirador do modo como dirige o Estado. Essa ideia é falsa ou verdadeira? A solução desse problema passa por 03 (três) caminhos. O primeiro consiste na arriscada tentativa de oferecer um conceito aceitável de fascismo; o segundo em indicar algumas de suas raízes; finalmente, compreender qual a visão de mundo na base desse modelo e as crenças em que se sustenta. Depois desse percurso, trata-se de estabelecer a relação entre o material colhido e a gestão do poder executada pelo Presidente, nela incluindo a recente concessão do indulto ao Deputado Daniel Silveira. Que é o fascismo, então?
A ciência política não conseguiu acertar contas com os diversos esforços para uma resposta à questão de saber: que coisa é isso, o fascismo? O que se sabe desse termo é que se aplica ao movimento que empolgou os italianos no fim da segunda década do século XX, portanto, logo após o desfecho da primeira guerra mundial. Sabe-se também de algumas características que conota. Indico aqui pelo menos 03(três) delas: a. trata-se de ideologia fundada na devoção e culto do chefe; b. no enfrentamento das oposições pelo uso da violência; c. no uso abusivo dos meios de comunicação de massa, submetendo-os a seu controle; d. no dirigismo estatal aplicado a uma economia que visa não ao interesse público, mas ao interesse privado. De posse desses elementos, abre-se o caminho, embora com linhas imprecisas e vagas, para conceituar o fascismo como um modelo político ou forma de dominação de corte pessoal e autoritário que tem como propósito não a defesa do interesse público, mas a defesa dos interesses exclusivamente privados. Mas, qual sua origem?
O movimento fascista tem duas vertentes: a original e a derivada. A vertente original é ligada a Mussolini e sua capacidade em mobilizar os italianos, explorar suas frustações, reacender fantasias, tendo em vista o que lhe sobrou ou coube na vitória ao lado de outros países, na primeira guerra mundial. A Itália, seduzida por promessas que acenavam para a ampliação de seu território, foi uma aliada importante das forças então vitoriosas. Mas os aliados não cumpriram com o combinado. Ficou fácil para Mussolini organizar e transformar em força política a subjetividade ferida, os furos emocionais, enfim, o ressentimento de seu povo. Marchou sobre Roma, recebeu a benção do Rei Vitorio Emanuel III e foi nomeado Primeiro-Ministro.
O ressentimento dos italianos, gerado ali onde deixaram de passar a mão naquilo que consideravam direito seu, tem como paralelo o ressentimento dos alemães, mas no sentido inverso. Os alemães foram derrotados na primeira guerra mundial. Acontece que os vitoriosos cobraram um preço muito alto na conta que apresentaram. As cifras ali eram astronômicas e insuportáveis. Isso arrebentou com o país. Foi naquele ambiente de ruínas que Hitler e seu grupo, os nazistas, costuraram seu discurso. O discurso que os inspirou foi, em boa medida, o discurso na base do qual estavam alguns dos elementos conjunturais que inspiraram Mussolini. Como efeito, ou melhor, ligado a isso, os nazistas ganharam as eleições parlamentares de 1933 e Hitler foi nomeado Primeiro-Ministro. O resto todos sabem. O que todos não sabem, pelo menos não sabem muito bem, é acerca daquilo que, para além da conjuntura, constituiu a visão de mundo, a natureza meio oculta, a crença que excitou, armou e preparou aquele ressentimento para o combate. Enfim, que crença moveu esse discurso? O modo como ela [a crença] se expressa passa pela fé? Se passar, o que a constitui?
Bem, admitindo-se aqui a crença no sentido de fé, essa se constitui de alguns componentes. Antes de mencioná-los, parece relevante indicar como ela se apresenta e defini-la. Ou seja, a fé se apresenta em duas dimensões: a pura e a fraudada. Tem uma coisa que é comum às duas; tem outra, que as tornam bem distintas. A coisa comum é que nas duas dimensões, o crente vê, toca, ouve e se aproxima da divindade. O que as distingue é que, na fé pura, a divindade é o próprio Deus; já na fé fraudada a divindade é um picareta. O picareta é um artista do disfarce. Sua máscara pode ser a de Trump com seu biquinho obsceno, mas pode ser a de Bolsonaro com seu sotaque miliciano.
Em todo caso, mesmo fraudada, a fé é uma força. Como força mexe e interfere no mundo e ainda regula suas relações. O fundamento disso se encontra em São Paulo [Hebreus, I e II] e em Kant [Crítica da razão pura]. Com São Paulo, a fé é a um só tempo garantia e prova. “É a garantia das coisas esperadas e a prova das [coisas] que não se vê.” A garantia das coisas esperadas é a crença na bem-aventurança, o sonho por um mundo ou vida melhor. A prova das coisas que não se vê implica adesão do intelecto ao seu objeto, um objeto fora do mundo dos sentidos. Com Kant, ciência, opinião e fé são graus diferentes de crença, esta, por sua vez, definida como fato do entendimento que considera algo como verdadeiro. Assim, a. a opinião é a crença que tem a consciência de sua insuficiência subjetiva e objetiva; b. a ciência é a crença que tem a consciência de sua suficiência tanto no plano subjetivo como no objetivo; c. a fé é a crença que tem a consciência de que é subjetivamente suficiente e objetivamente insuficiente. Pois bem, a fé como crença quebrada – uma vez que, sendo forte no campo subjetivo, é fraca no campo objetivo – é a coisa que fecunda alguns dos seus artigos. Quais?
1. A fé na tradição. O compromisso do fascismo é com os valores e práticas da tradição. Por exemplo, um dos mais importantes teóricos do fascismo na Itália, Julius Evola, considera que as luzes da Igreja Católica se apagaram com a idade média; que as luzes das ciências nunca estiveram tão acesas quanto no tempo da alquimia; que as luzes da dominação política somente estiveram acesas quando prevaleceu o “princípio masculino” e se apagaram quando passou a prevalecer o “princípio feminino” da democracia. O projeto de Bolsonaro é liquidar com o princípio da democracia. Se não for isso, do que lhe serve questionar aquilo que formalmente a sustenta, o processo eleitoral, o TSE e seus ministros?
2. A fé no espírito acrítico. No fascismo e seu “caso” com o passado, quem diverge ou discorda dos valores da tradição é traidor. O espírito moderno nada tem a ver com o espírito fascista. A modernidade reconhece no espírito crítico um dos fundamentos dos novos tempos, talvez o mais importante. A ciência que nasceu com o espírito moderno faz o elogio das distinções, do desacordo, da crítica implacável, às vezes impiedosa a tudo aquilo que é exposto no mercado das descobertas, cujos produtos são o resultado de intensas pesquisas. É assim que ela avança. Bolsonaro deu as costas para o discurso da ciência, não acredita nela. Acredita na alquimia e, a partir dela, na cloroquina como o elixir da vida sadia. Corona agradeceu e o presenteou com mais de 650.000 mortes.
3. A fé na força do mito. A psicologia do fascismo é alimentada por dois sentimentos: de um lado, o desprezo pelas massas; de outro, o elogio às elites, aos aristocratas, aos guerreiros, aclamados como heróis. O papel das elites é o de colocar as massas, isto é, os fracos, a seu serviço. Isso recupera a força de uma polaridade que levou 1.200 anos, opondo patrícios/plebeus ao longo da história de Roma. De qualquer modo, tem muito de aparente e pouco de real nessa oposição. Com efeito, a oposição entre patrício/plebeu, explorador/explorado, forte/fraco, ao invés de ódio recíproco, criou mesmo foi alguma intimidade, onde o desprezo ou indiferença de um, o opressor, correspondeu no outro, o oprimido, o desejo de ser amado, protegido, amparado. O fascismo conhece o fenômeno e lida com ele muito bem. Por isso, Bolsonaro foi vendido às massas como guerreiro, herói, mito. Seu papel seria o de conduzi-las para uma vida melhor, a ser desfrutada agora no império da moralidade. Enfim, grande parte do povo, conduzido pelas elites [empresarial, religiosa, militar e, em boa medida, setores do MP e do judiciário], caiu na conversa e entupiu as ruas e as urnas com o entusiasmo dos ingênuos.
4. A fé no culto da ação. No fascismo, o culto às elites, aos aristocratas ou grande homem, enfim, ao herói, tem como companhia outro culto. O outro culto é o da ação. Ela vale por si mesma. Não tem ou não deve ser precedida ou ser o resultado de qualquer reflexão. Como consequência, a cultura deve ser colocada sob suspeita. Afinal, é nela que se localiza a origem do espírito crítico. Por isso mesmo, em relação à cultura, Bolsonaro extinguiu o Ministério da Cultura [fez dele uma secretaria do Ministério do Turismo], vetou a lei Luiz Gustavo que previa a verba de três bilhões e oitocentos milhões de reais para Estados e Municípios e, semanas atrás, vetou o projeto de lei Aldir Blanc que previa também a verba de 03 (três) bilhões de reais para distribuí-la nos Estados e Municípios da Federação.
5. A fé no combate interminável. Para o fascismo a vida é luta; nela deve haver uma guerra permanente. Os inimigos podem e devem ser derrotados. A derrota dos inimigos implica a morte de todos eles. Se não houver inimigo, deve ser inventado. A primeira invenção de Bolsonaro foi o comunismo. Desde 1985, ninguém com alguma expressão no país fazia uso desse termo na linguagem política. Pois bem, o cara conseguiu arrastá-lo do canto onde estava guardado e em paz, passando a exibi-lo como se fosse o demônio ressuscitado. Depois, inventou outros demônios. A lista não é pequena. Alguns são bem conhecidos, por exemplo, a Folha de São Paulo, a Globo, a urna eletrônica, o TSE, O STF, ou seja, tudo o que for capaz de assustá-lo e, por isso mesmo, garantir a tal da guerra permanente.
6. A nova fé. Nos dias de hoje, o fascismo é atualizado por um marqueteiro e estrategista político chamado Steve Bannon. Ele é líder de um mundo sombrio, habitado por gente da extrema direita. Seu projeto é o de conduzir a alt-right [direita alternativa] rumo à dominação global. O ponto de partida na execução dele foi a eleição de Trump em 2016, nos Estados Unidos. Após a vitória e já como membro do governo comandou exitosa campanha de arrecadação de fundos para construir o muro capaz de separar o país do México. Não resistiu ao fascínio de tanto dinheiro e consta que pôs a mão em 01 milhão de dólares. Descoberto, foi condenado, preso e, na sequência, indultado por Trump no último dia de seu governo. Hoje anda solto por aí. Como flor do mal, exala seu cheiro pelo mundo, envolvendo vários parceiros, entre eles, o mais importante cover latino-americano de Trump, o Capitão/Presidente Jair Messias Bolsonaro. Aliás, no papel de cover [uma espécie de imitador], o cara tem sido impecável. Tanto que a direita, liderada por gente socialmente inútil, não lhe faltou com o aplauso e o riso broco, bobão e boçal. Foi com essa linguagem, balbuciada no modo analógico, que acolheu e aprovou o indulto com o qual Bolsonaro protegeu ou blindou um de seus mais importantes afilhados, o deputado Daniel Silveira, ao extinguir a punibilidade dirigida contra este pelo STF. Com isso, Bolsonaro, mais do que imitar Trump, fez aquilo de que mais gosta, ou seja, encostar na parede as instituições da República e, por tabela, comprometer o destino de seu povo.
Platão, na República, ofereceu os elementos, mas não formulou o seguinte problema: será se tem castigo maior do que um povo escolher entre seus filhos, o pior para conduzi-lo?

Referências bibliográficas:
1. Bobbio, Norberto. Dicionário de Política (editora UNB).
2. Emanuel kant. Crítica da Razão Pura (editora Martin Claret).
3. Platão. A República (editora Nova Cultural).

Carlos Alberto Menezes é doutor em Direito [PUC/SP], professor de direito penal [UFS] e autor do livro O limite das exculpantes penais [editora UFS].

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