Sexta, 24 De Janeiro De 2025
       
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PARÁBOLA DO TREM


Publicado em 30 de novembro de 2014
Por Jornal Do Dia


* Paulo  Fernando  Morais

Naquele tempo, no começo da manhã de um dia de dezembro, meu pai,  chamado Júlio,  me acordou  e  disse: "Vamos a Carmelo, seu Flávio,  apanhar sua irmã".
Morávamos no engenho Jirau, a uma légua da estação de trem. Lena estudava em Selene, e estava chegando para  as férias de fim de ano.

Nunca me senti à vontade com meu pai, porque me tratava com a cerimônia que dispensava  a um estranho. Era um homem calmo e tenso, me sentia inseguro ao seu lado.  Alguns anos depois que ele morreu, penso que descobri o porquê do tratamento formal: era uma maneira de  brecar  um pirralho  traquina dando-lhe  a mesma deferência dispensada a um homem feito, uma troca no intuito de que eu não o fizesse passar vexame.
Pouco antes de chegarmos,  a estação estava cercada por uma multidão de pessoas com ar festivo, acenando  com bandeirolas.  Éramos dois matutos no meio de uma festa sem nome.  Cuidando para que eu não escapulisse,  perguntou a um vendedor de merendas: – O que está havendo? – Não lhe disseram?! O Homem está chegando nesse trem. – Não é possível!  No Jirau ninguém está sabendo.  – É que  Ele só chega de supetão. Está no Livro Santo. – A boca do meu pai ensaiou um sorriso, e uma alegria que me pareceu única ficou imobilizada nos  seus olhos molhados.  Nunca o tinha visto demonstrar  esmorecimento sentimental, por isso fiquei preocupado e mudo diante da surpreendente  imagem que ainda carrego comigo: um homem miúdo, seco, de emoções trancadas, com um brilho de estrela no rosto encovado.
Quando emendei perguntas sobre Aquele que estava chegando, abraçou-me como jamais o fizera, me dizendo que era muito  mais poderoso e mais rico do que seu patrão, o lendário coronel Jacintho do Jirau, nossa medida de grandeza.

Rompemos a aglomeração com dificuldade, e nos acomodamos  subindo na porteira de um quintal da qual era possível avistar a maior parte do trem, que já surgia resfolegando num túnel de fumaça. Mal respiramos aliviados , um rolo humano nos empurrou até a plataforma da estação.  Minha irmã avistou-nos, e, com o olhar espantado,  gritou e agitou as mãos  sinalizando que ainda não podia descer.
Meu pai estava ansioso não apenas para vê-la, mas principalmente para que lhe contasse sobre o Homem, se chegara a vê-Lo de perto. Quando Lena desceu ficou desapontado;  ela própria fora surpreendida com o ajuntamento, a recepção festiva.  Não; não  ouvira nenhuma conversa a respeito d’Ele.  Se estivesse no trem todos os passageiros saberiam. – E a quem  centenas de pessoas estão acompanhando  em tropelia, pelas ruas de Carmelo? – perguntou meu pai.
A decisão de nos deixar em casa e retornar à cidade empolgaram-no. Já doente, engoliu o comprimido das 10(nada o faria esquecer de tomar seus remédios na hora certa).

O cavalo Estrelo acusou o risco de espora pela primeira vez: galopou, acompanhado pelo de Lena, que me levava na garupa. Meu coração quase arrebenta de tanta  alegria ao descobrir um pai destemido, capaz de montar que nem Nabor vaqueiro.
Ao chegarmos ao Jirau, Lena contou a minha mãe, que se chamava  Luíza,  o que estava acontecendo em Carmelo, e a disposição de meu pai de retornar à cidade. "Troque de roupa, e vá, Júlio. Você nem O viu e a cara já é outra. Não deixe de falar com Ele. Este sim, pode ajudá-lo". Caprichava nos estímulos, mas intimamente não cria que o marido  tivesse ânimo para voltar.  Em outras ocasiões, mesmo antes de adoecer,  ela  cansara de arrumar e desarrumar mala e trecos para viagens que ele jamais faria. Um pobre homem de larga criatividade, que alimentava projetos que se esfumavam ainda em elaboração.

Enquanto  se preparava no quarto, solfejava, desajeitado, Noite Feliz. Ouvi-lo cantar nos desconcertou.  Escapuli e me atirei na cama abraçando um travesseiro. Minha mãe e Lena frearam a emoção e retomaram a conversa num tom sussurrante que não me impedia de ouvi-las. Entre as duas corriam assuntos graves. Ao sair do quarto as surpreendi com os olhos cintilando. Quis saber, finalmente, o que estava acontecendo; tergiversaram dizendo que meu pai estava cuidando de melhorar nossas vidas. O Jirau era bom, mas na cidade andava-se mais depressa.
Nesse instante meu pai apareceu, pronto para sair. Montou com esforço, depois olhou para nós três com o semblante apagando,  o brilho da pele areada pela cavalgada matutina  cedendo  ao tom fosco.  Visto da calçada,  era um homem  estreito, desajeitado no lombo do cavalo. – Até. Logo mais estou de volta – A pisada dura de Estrelo revelava que o surpreendente cavaleiro que me enchera de orgulho sumira por ali, na estrada entre o Jirau e Carmelo.

Retornou  já de noite. O rosto abatido não vinha de dentro, era reflexo da viagem puxada, em se tratando de um homem com as forças minguando. Arriou-se na espreguiçadeira, minha irmã puxou-lhe as botas. Todos queríamos saber sobre o Visitante, se O vira, como era Ele.  – Um Homem como a gente, mas que tudo pode – respondeu serenamente. –  Ele lhe disse alguma coisa, Júlio? – perguntou minha mãe, ansiosa. – O que eu já sabia,  mas de um jeito que me encheu de  consolo e coragem. – Depois virou-se para mim:  – Você,  seu Flávio, já é um homenzinho. Logo será o chefe da casa. Não me decepcione.  

* Paulo  Fernando  Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)

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