Portaria sobre aborto cria estupro moral
Publicado em 30 de agosto de 2020
Por Jornal Do Dia
* Paulo Moreira Leite
Assinada dias depois que o drama de uma menina de dez anos revelou luzes dramáticas sobre o aborto no país, uma portaria do ministro da Saude Eduardo Pazuelo representa um passo atrás nos direitos das mulheres brasileiras.
Apanhadas num momento de fragilidade extrema — após sofrer um estrupo que resultou em gravidez — a partir de agora elas serão ser levadas a enfrentar um quadro de violência moral sem limites.
A regressão é clara, num ambiente que já estava longe de atender às regras de países onde os direitos das mulheres são respeitados de verdade.
Pelas normas definidas na portaria 1508, de 2005, em vigor até agora, já era preciso atender a um caudaloso conjunto de exigências.
Era necessário produzir um "Termo de Relato Circunstanciado", assinado pela vítima ou por um representante legal, além de dois profissionais de saúde, descrevendo as circunstâncias em que o crime de estupro ocorreu. Além disso, era preciso obter um parecer assinado por um médico, contendo um pacote de exames sobre a saúde da mulher.
A portaria de Pazuelo, de número 2282, traduz uma visão que acima de tudo coloca em dúvida a palavra da própria vítima.
Obriga os médicos a notificar a polícia. Também exige a preservação de "possíveis evidencias materiais a serem entregues imediatamente a autoridade policial, tais como fragmentos e embrião ou feto".
Como previsível, o efeito prático das novas exigências será desencorajar possíveis pedidos de aborto legal, criando novas formas de intimidar as vítimas.
A partir de agora, toda mulher que estiver interessada em interromper uma gravidez que é fruto de um crime corre o risco de enfrentar um interrogatório policial, conduzido por profissionais treinados para duvidar da palavra de seus interlocutores.
Verdade que, limitada a casos de estupro, mesmo a portaria de 2005 estava longe de atender as necessidades da vida real das mulheres de nosso tempo.
Não tratava o aborto como um direito assegurado às mulheres — mas como uma opção que pode ou não ser atendida pelo sistema de saúde.
Salvo adolescentes e senhoras de classe média, com recursos para interromper uma gravidez indesejada na segurança de consultórios privados, até hoje a maioria das mulheres arrisca a vida quando tenta um aborto.
Numa tragédia tão previsível como desnecessária, centenas de milhares acabam morrendo, todos os anos.
Fruto de uma hipocrisia típica de nossa cultura, a educação sexual permanece a margem dos currículos de 80% das escolas públicas, o que dificulta toda discussão responsável sobre o tema.
Criando novas dificuldades numa situação que já beirava o insustentável — sim, como nos ensinou uma criança de 10 anos — a portaria de Pazuelo equivale a um estupro moral.
Em vez de ampliar os direitos das mulheres, tenta criar um ambiente de silêncio forçado.
Alguma dúvida?
* Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA (Conheça e apoie o projeto Jornalistas pela Democracia)